Apesar da globalização da economia, fenômeno observado com mais força a partir do começo dos anos 2000, remontar a antes ainda da era das grandes navegações, no século 16, manifestações culturais foram deixadas à margem do processo, verificando-se uma absorção lenta de filmes produzidos fora do eixo Estados Unidos-Europa. Se serve de consolo, a introdução de filmes originários de países periféricos da América Latina, bem como os africanos e asiáticos, demonstra igual resistência por parte de fatias do mercado e do público, até que são, enfim, descobertos.
Esse é o caso de “Maktub”, que só pelo nome decerto já põe muita gente para correr, embora não se tenha nada de mais aqui. A história levada à tela pelo diretor israelense Oded Raz em 2017 a partir do roteiro dos compatriotas Guy Amir e Hanan Savyon, que também protagonizam a trama, parte de uma ideia das mais perigosas — e muito mais ainda se se considerar de onde vem — a fim de desdobrar um enredo sobre arrependimento, mudança de vida, idealização de um mundo mais justo.
Chuma e Steve, personagens de Amir e Savyon, respectivamente, são dois brucutus que se encarregam do serviço sujo da máfia de Israel: inventam toda sorte de dificuldades a fim de vender facilidades para justificar a propina que exigem dos comerciantes de Jerusalém, só com isso já removendo todo o verniz de mistificação acerca da cidade, sagrada para as três religiões abraâmicas, cristianismo, judaísmo e islamismo. Numa dessas, a bomba instalada por um terrorista explode no restaurante cujo dono achacavam, mas eles saem ilesos, a despeito de uma surdez temporária — e conveniente — de Chuma, que interpreta o fato como um livramento divino, um milagre, demandando retribuição à altura. Usando o dinheiro que já haviam recebido como pagamento pela extorsão antes do ataque, a dupla passa a realizar desejos de fiéis que peregrinam até o Muro das Lamentações, como se fossem anjos da guarda de quem deposita entre as pequenas gretas das ruínas seus pedidos sob a forma de bilhetes, evento que marca o início do segundo ato do longa.
Tudo estaria sacramentado dessa maneira, não fossem os enroscos íntimos deles, em especial de Steve, que negligencia o filho que teve com Doniasha, de Anastasia Fein, na prática assumido por Chuma. É claro que a complicação principal se liga muito mais à reação dos mandachuvas da quadrilha, que não estão dispostos a esquecer a tragédia e admitir o prejuízo, arco dramático que vai encaminhando “Maktub” para onde Raz quer. Malgrado o impacto das sequências iniciais, a história tem um pé na comédia de costumes, que apesar de umbilicalmente relacionada às doutrinas majoritárias no Ocidente, faz questão de remontar à noção de carma, preceito visto no budismo e no hinduísmo, por exemplo, em que as atitudes de um indivíduo frente à vida determinam o que irá lhe acontecer no plano metafísico.
O cinema já aplicou tal raciocínio em uma pletora de filmes, com maior ou menor enfoque. Em “Paddleton” (2019), o diretor Alexandre Lehmann toma a ideia da morte iminente, se aproximando de um homem ainda jovem aos poucos, a fim de levantar discussões como a preservação da dignidade, mesmo num cenário de absoluta degradação física, leitmotiv de que também se vale “50/50” (2011), de Jonathan Levine, diferindo do filme de Lehmann graças à inclusão do componente amoroso. “Maktub” se assemelha mais àquele, uma vez que o envolvimento romântico entre Steve e Doniasha nunca vem à tona, e, aludindo diretamente ao título da produção, ele e Chuma têm de cumprir sua sina.
Pode-se atribuir a afinidade entre Amir e Savyon aos tantos trabalhos juntos na televisão de Israel. Os atores desenvolvem seus personagens de maneira orgânica, cada qual se enquadrando com precisão ao que o público espera deles, um, o criminoso que não se conforma com o seu fado e depois de uma experiência traumática vai driblando as investidas do submundo como pode, e aquele com digamos, consciência de classe. O maior calcanhar de Aquiles do roteiro certamente é a grande concentração de coadjuvantes, não por serem muitos, mas não chegarem a erigir as subtramas que os justificariam na história. Entretanto, há que se enaltecer a composição dos protagonistas, o estranho casal do crime organizado hierosolimitano.
Amalgamando elementos de crítica social que fazem referência à religião, à política e à apreensão oblíqua de um e outro conceito, “Maktub” acaba por evitar a mesmerização pela polêmica, já que tudo é levado à cena de modo fluido. O Oriente Médio — Israel, em particular — retratado por Oded Raz é respeitadas as idiossincrasias de sua gente, um lugar igualzinho a todos. Dissipar a bruma de segredo acerca de um pensamento estabelecido ao longo dos anos é a primeira etapa (e a mais impreterível) quanto a se burlar o preconceito mais arraigado.
Filme: Maktub
Direção: Oded Raz
Ano: 2017
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10