Nas recônditas salas de aula do pré-escolar, as crianças são postas a se entreter na tarefa de pontilhar, em papel ofício, a bandeira do Brasil com as suas cores correspondentes, seja com giz de cera, lápis de cor ou com pequenas bolinhas de papel, em colagens desastradas para o manuseio de crianças de quatro anos.
É assim que conhecemos a nossa bandeira. Que chegamos a saber, muito jovens, o significado do verde retangular das nossas matas, do amarelo triangular do ouro de nossas terras, do azul estrelado de nosso céu e do que se espera desse lugar que se chama “Brasil” na faixa branca em que se inscreve “ordem e progresso”.
Foi dessa forma que, em meus primeiros anos, me tornei íntima dessas cores e formas; nos anos em que o universo é ainda pequeno na familiaridade das calçadas de nossas casas, no caminho da escola e nas telas de televisão que se abrem ao mundo distante.
Mas, também, fora do colégio pude ver essa enorme bandeira hasteada em frente aos prédios da prefeitura e do banco, enquanto o vento as arqueava e batia-as, incessante, contra os mastros. Me lembro, de passagem, de rápida explicação do meu pai, enquanto éramos turistas no centro da cidade, de que nossa “verde e amarela” era o símbolo de nossa nação entre aquelas de muitos outros países.
Me disse, ainda, que os nossos vizinhos falavam espanhol, diferente de nós, que Dom. Pedro proclamou a independência (àquela altura, compreendido, intuitivamente) e que tudo teve início na chegada dos portugueses ao Brasil, onde já havia índios. Um compilado raso que atende à insaciável curiosidade infantil.
Tomadas essas primeiras lições acerca de uma nação que ainda não tinha muita forma na imaginação insípida de uma criança, já sabia que eu fazia parte desse lugar e que isso deveria ser bom, pois via com que orgulho se ostentava a nossa bandeira nas abotoaduras dos uniformes e nas camisas em dias de jogo da seleção.
Mas com o olhar de hoje, percebo que nada contribuiu mais para que chegasse a me sentir brasileira do que a exposição diária à programação televisiva. Foi assistindo aos jogos olímpicos e, com mais frequência, aos jogos de futebol, que experimentei me sentir representada, enquanto o meu olhar atento já buscava nas arquibancadas internacionais a nossa bandeira, conflagrada em meio a uma multidão estrangeira.
Aí o coração disparava, sem os ressentimentos de nossas feridas, pela alegria simples, mas intensa, de ser brasileira. Um sentimento que se estende por todas as estações que tenho vivido.
Assisti a grandes personalidades declarar emoção parecida, enquanto se abraçavam à nossa bandeira nos palcos de show, nas pistas de fórmula 1 e na celebração de pactos políticos, exibidos em curtas imagens, enquanto se destacava o papel do Brasil em certas negociações internacionais.
Mas nem toda comoção era como aquela das grandes torcidas pintadas de verde e amarelo. O luto de personalidades e as grandes tragédias alcançavam os brasileiros em suas casas, com surpresa e terror. Desabamentos, quedas de aviões, perdas em enchentes, traziam vida à uma solidariedade passageira, mas honesta. Assim, éramos, de súbito, entregues a um sentimento cordial, ao qual se buscava expressar, mais uma vez, em nossa bandeira posta a meio mastro ou estendida sobre os caixões.
Aí, nessas deliberações em que a massa não participa, há um consentimento tácito das honras prestadas em respeito àqueles que partem. De toda maneira, a repercussão dessas notícias, boas ou ruins, se dá através dessas milhões de pessoas que espelham sensação parecida de alegria ou tristeza. Um eco.
O eco que se faz em nossas salas, de nossas próprias impressões, e que melhor nos abastece em nossas convicções patrióticas. Assim, se dificilmente a razão é capaz de nos fazer sair da dispersão conflituosa para olhar em uma única direção, o sentimento que se encontra nessas catarses pode nos domar, em breves momentos, revivendo em nós a vontade de estar aqui, independente das circunstâncias que preenchem a nossa vida.
Claro que isso não deixa aqueles que tem mais consciência ignorar as contradições sociais, na desigualdade patente e mesmo no patriotismo “frio” que se ostenta em discursos programáticos.
Contudo, esvaziadas essas fortes impressões pela lida do dia a dia, qualquer povo que não monta intriga com sua própria identidade, não se acautela no uso dos símbolos de sua pátria, imiscuídos organicamente nos objetos que ornamentam suas casas e suas ruas.
Em outras palavras: uma nação que se fortalece não precisa de pretextos para usar sua bandeira, reservando o hino às solenidades. Ela (a nossa bandeira) se ilumina nas cores dos letreiros do comércio, se pendura nos bares e nas feiras, estampa as toalhas e adorna, de lantejoulas, as blusas das mulheres; vem nas capas dos cadernos, nos adesivos infantis, sem os arroubos de gravidade e, mesmo, do fanatismo severo e do sectarismo violento que se infesta nas pátrias em crise, como se tem visto em nossos dias.
Pelo menos, foi o que testemunhei durante muitos anos de minha infância e o que vejo nas telas, que a tecnologia agora nos empresta, acerca da cultura de muitos países.
Com isso, se atesta: uma bandeira, embora rica de significados, transmutados na alquimia dos sentimentos que seu povo manifesta, não deve se tornar estranha a ele, mas longe disso, ser considerada acima das suas crises conjunturais, pois se trata de um símbolo que revela sua grandeza, justamente, no propósito de obstinação atemporal e universal pela qual se definem as nações.
Nesse sentido, a nossa bandeira não precisa ser disputada porque ela é o emblema máximo dessa nação à qual todos aqueles que tem certidão, reconhecida por nossas instituições estão, inelutavelmente, vinculados.
Mas ao portá-la, manifestamos não o dever, mas sim, a vontade de continuar a pertencer, entre tantas civilizações, a esse conjunto, reconhecendo que o nosso destino deve se determinar em seu futuro. Logo, quando a ostentamos em nossos braços, em nosso peito ou qualquer lugar que nos é familiar expressamos, acima de tudo, a liberdade de estar.
Sejamos, então, mais uma vez, a torcida que não diz adeus à sua bandeira, no eco de palavras não ensaiadas e que não pestaneja no sentimento que a conduz. Ou, ainda, aquela audiência que reconhece nas imagens da tevê o próprio povo.
Quando assim for, que o nosso orgulho volte a ser de novo um suspiro inconsciente, impregnado, sem cerimônia, nas estampas do dia a dia, na algazarra do comércio ou nos balangandãs espalhados pela casa. A partir daí, poderei me esquecer de defendê-la, e sim, revê-la com a leveza e sobriedade com que haveremos de considerá-la.
Tudo isso soa como uma quimera, que se desperdiça nas palavras e no desejo de quem se atenta às convulsões que temos espalhadas; pois, vemos uma geração ferida em seu orgulho, que, dificilmente, crê nessas ideias de pactos e união cívica.
Mas se somos portadores de indignação é porque nos conduzimos pelos mesmos ideais que inspiram paz e conciliação. Pensemos, então, nas crianças que estão por descobrir o Brasil em nossa bandeira. Que elas possam conhecê-la, não como símbolo de oposição, mas sim, como deve ser, de união dos brasileiros no mesmo destino geográfico, cultural e político.