O pesadelo selvagem na Netflix que você não conseguirá esquecer Divulgação / Netflix

O pesadelo selvagem na Netflix que você não conseguirá esquecer

Todo mundo ama e todo odeia a qualquer tempo, na placidez dos tempos de maior tranquilidade como no decorrer de guerras estúpidas e que avançam pelos anos, independentemente do que possa desejar a maioria. Os sentimentos humanos afloram com força ainda maior nessas circunstâncias em que, opressas, as emoções se fazem conhecer mediante qualquer brecha do alquebrado espírito, momento durante os quais, não raro, manifestações sobrenaturais — ou o que grande parte das pessoas entende como sendo esses fenômenos — tornam-se mais frequentes e põem em xeque as frágeis certezas do homem. São numerosos os registros de criaturas sobrenaturais que deixam seus túmulos quando ninguém vê e zanzam pelas cidades como se ainda estivessem vivas. Os mortos-vivos habitam a literatura fantástica desde pelo menos a Idade Média, quando também relatos sobre bruxas e vampiros se tornaram populares — bruxas existiram mesmo e acabaram queimadas nas fogueiras da Inquisição e as tramas de vampiros têm alguma fidedignidade histórica, em grande medida, graças à sombria figura do conde romeno Vladímir Drákul (1431-1476), ou Vlad, o Empalador. Quanto aos mortos-vivos, a controvérsia é certa. Há quem diga que rituais de magia negra praticados em países da América Central, como o Haiti, por exemplo, seriam capazes de fazer os finados voltarem à vida, e existe quem defenda que essa conversa toda é mero delírio ou, pior, grosso preconceito. De qualquer forma, os mortos-vivos ganharam o mundo — e, por óbvio, o cinema há algum tempo.

O diretor tailandês Sittisiri Mongkolsiri se aproveita das tantas fragilidades humanas em “Inhuman Kiss” (2019), conto de terror com espaço amplo para deliberações sobre os rumos da humanidade. Em seu país lendas sobre de criaturas monstruosas que se dividem entre o mundo dos homens e o dos fenômenos inexplicáveis também passam de uma geração a outra, aumentando a curiosidade do espectador comum quanto ao Sudeste Asiático, da mesma forma que tem acontecido com a Coreia do Sul desde meados da década passada, quando veio a público “Invasão Zumbi” (2016), um dos melhores filmes do gênero de todos os tempos. Pleno de metáforas sobre a vida e seus mistérios, como um trem cheio de passageiros inicialmente hostis uns aos outros, mas que têm de se unir contra um inimigo desconhecido e muito mais poderoso — sem prejuízo do simples entretenimento de terror —, o trabalho de Yeon Sang-ho é um ótimo cartão de visitas para outras produções com o mesmo tema.

Em excetuando-se o componente sobrenatural, o filme de Mongkolsiri não tem muitas semelhanças com o longa de Sang-ho. O roteiro de Matthew Chookiat Sakveerakul ambienta a história num vilarejo pobre e atrasado a alguns quilômetros de Bangcoc — textos de apresentação do filme alegam que o enredo se passa durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mas não nada de palpável na narrativa que o confirme, bem como a abertura não denuncia em nada o que o diretor de fato pretende. Sequências em que o casal de protagonistas é visto cruzando campos de arroz sugerem um filme de amor como “Eternamente Sua” (2002), dirigido por Apichatpong Weerasethakul, mas as aparências, neste caso, enganam.

Vítima de uma maldição — devidamente explicada só na virada do segundo para o terceiro ato —, Sai, a filha de camponeses vivida por Phantira Pipityakorn, fora possuída por Krasnue, uma entidade cuja natureza demoníaca Sakveerakul ameniza ao frisar que o monstro não ataca seres humanos (?). Subentende-se que a criatura, que só consegue evoluir no corpo feminino (os homens servem-lhe exclusivamente de alimento), espera que a hospedeira se aproxime da idade adulta para se manifestar, e a condução de Mongkolsiri é precisa quanto a delimitar a transição de Sai de menina para moça. O diretor lança mão de um gore indiscriminado, que serve igualmente para aludir à menarca e a todos os outros ciclos menstruais que a sucedem, para dar a dimensão do poder destrutivo da Krasnue, como se não bastasse uma devoradora de homens também na acepção sexual do termo. O namorico com Jerd, o bom selvagem interpretado por Sapol Assawamunkong, perde o resto de graça que poderia ter no momento em que a personagem de Pipityakorn retoma o contato com Noi, de Oabnithi Wiwattanawarang, médico em início de carreira que regressa ao povoado para clinicar no pequeno hospital da aldeia (e evitar ser alistado como combatente na guerra que não acontece).

Fica claro que em “Inhuman Kiss” todos os fenômenos paranormais de fundo satânico só se desenrolam mesmo porque uma mulher, jovem e bonita, resolve ter algum domínio sobre a própria vida e dispensa a tutela da comunidade e passe por cima da autoridade dos pais, ainda que continue respeitando-os. A despeito de todo o reacionarismo de um núcleo social perdido no coração da Tailândia há mais de sete décadas, o filme, e principalmente sua heroína, tiram de letra qualquer reserva inicial e a história chega ao fim sem maiores traumas, não obstante as carnificinas ao longo do caminho serem assombrosamente realistas. Mongkolsiri dá sua versão do amor, o possível e o maldito, com a margem exata para também lembrar as tradições menos gratas de seu povo. A vida nem sempre é doce. O amor quase sempre é desumano.


Filme: Inhuman Kiss
Direção: Sittisiri Mongkolsiri
Ano: 2019
Gêneros: Terror/Romance
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.