Filme que acaba de chegar à Netflix é tão repugnante e assustador que te fará rir para poder suportar

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Reconhecermo-nos suscetíveis a toda natureza de emoções, boas e más — especialmente os maus —, é não só necessário como uma das condições fundamentais para a preservação da vida. Quanto mais experientes nos tornamos, graças às tantas intempéries que nos coloca nossa jornada no mundo, descobrimos no mais fundo de nossa alma sentimentos que nunca imagináramos serem possíveis, apresentados sob a forma da iluminação diante de cenários até então tidos por improváveis. Abandonamos sendas que julgávamos as mais adequadas quanto a atingir nossas metas, pequenas ou grandes, a fim de nos enveredarmos por estradinhas cheias de trechos acidentados, tortuosos, que alguém sabe-se lá com que propósitos, só para sermos obrigados pelo peso das circunstâncias a regressar ao ponto de onde saíramos, combalidos, exaustos, humilhados. Mudanças são, quase sempre, fonte de medo, um pai devotado de muito do que não presta no homem, do lixo emocional que o paralisa e adoece. O medo é o pai da morte, e tem o condão de chamar essa sua filha dileta para mais perto de nós quando sente que está no comando.

Um verme gigantesco, pegajoso, repugnante chega de outra dimensão para aterrorizar os pacatos moradores de uma cidadezinha perdida no mapa, cada vez mais preocupada com o sítio infligido a sua gente ordeira e algo perdida no tempo. Ninguém sente a menor necessidade de mudar, aliando a essa perigosa evidência o argumento de que o homem que não domina suas vontades torna-se um escravo delas e de si próprio. Mestre do terror, James Gunn eleva à máxima potência do requinte a sensação de pânico diante de criaturas e situações desconhecidas, quiçá o maior medo do gênero humano, essa espécie particularmente fraca, acuada, em pânico frente a tudo o que não pode subjugar, sem margem para outras alternativas, começando de seus próprios medos. O homem se vale do pensamento filosófico organizado e metódico a fim de dar à vida uma ideia de que tudo converge para um mesmo fim, qual seja, extrair a coragem imprescindível para continuar de pé do mundo, da interação com os outros e, por óbvio, de como processamos essas informações à luz da nossa própria visão acerca do que é viver.

“Seres Rastejantes” (2006) é um filme singular. Poucas vezes na história do cinema se conseguiu unir a reflexão sobre os assuntos mais fundamentais para o mais humilde dos indivíduos a uma perspectiva eminentemente nonsense, e que, por falar com tamanha propriedade a respeito de uma infinidade de temas, suaviza seu caráter ficcional, ridículo, farsesco porque amplamente compreendida por todos. O roteiro de Gunn tem muito de hermético, de difícil aplicação, dada justamente a sua natureza de delírio, de conjectura, de experimentação estética e retórica de recursos pouco sofisticados do ponto de vista intelectual, porém muito vívidos de construções provocativas, que desafiam o espectador, exigindo-lhe repertório adequado para absorver as sutilezas do texto de Gunn, nada óbvio, caudaloso, pleno de tropos que se retroalimentam, avançando e recuando ao longo da narrativa.

A larva pantagruélica em torno da qual gira o eixo do filme surge com a queda de um meteorito e vai parar nas entranhas de Grant Grant, o milionário interpretado por Michael Rooker. Na verdade, a entrada do monstro em cena serve muito mais como pano de fundo para que Gunn desenvolva o conflito que se vai avultando à medida em que a Starla de Elizabeth Banks também aparece. Sobrevivente de uma infância miserável que fez muito infeliz uma família já pouco convencional, Starla, casada com Grant, mantém a serenidade não obstante seu marido vá se metamorfoseando na aberração que, por si só, justifica o aprofundamento do terror grotesco, quase escatológico. O diretor fecha o arco dramático central do enredo com a figura de Bill Pardy, o xerife blasonador e lambão de Nathan Fillion.

Gunn aprimora o talento que emprega sem economia em trabalhos como “Guardiões da Galáxia” (2014), revelando-se um realizador como poucos quando se trata de fundir gêneros aparentemente desconexos. Eis a alma de “Seres Rastejantes”, uma história de terror com elementos de uma realidade assombrosamente incômoda.


Filme: Seres Rastejantes
Direção: James Gunn
Ano: 2006
Gêneros: Ficção científica/Terror/Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.