Filme da Netflix te fará conferir fechaduras, olhar debaixo da cama, enquanto desgraça seu cérebro Tribeca Film Festival

Filme da Netflix te fará conferir fechaduras, olhar debaixo da cama, enquanto desgraça seu cérebro

Traiçoeira, a memória prega suas peças em qualquer um. Muitas vezes, podemos jurar que certo fato se passou de uma determinada maneira, dar detalhes de como uma pessoa se encontrava em tal ou qual situação, e na verdade tudo não passar de mera fantasia, um artifício elaborado pelo cérebro humano quiçá para nos livrar de revelações chocantes demais, cuja natureza nos seria insuportável. Parte dessas lembranças até pode se concentrar no passado, mas uma boa medida do que nos causa terror está mesmo no dia a dia, escondido na fragilidade das relações em que somos obrigados a permanecer, ou por sermos excessivamente vulneráveis a influência de quem nos rodeia, ou por não conseguir entender nosso papel no mundo, malgrado a própria vida não se canse de dar sinais. Um lado da equação está intrinsecamente vinculado ao outro e não é possível seguir sem achar um jeito de afinar essas duas variáveis, que, verdade se diga, adquirem mais peso à medida que o inexorável tempo avança, e trocam de lugar, aumentando a sensação de que o caos, definitivamente, reina. E nos aprisiona.

“Lavender” (2016), do canadense Ed Gass-Donnelly, explora o quanto pode a agonia de sua personagem central, uma mulher tomada por pensamentos que não controla e que a escravizam e, o pior, sobre cuja concretude ela sequer é capaz de se manifestar. Tudo muito bem embalado pelos recursos de que o cinema se vale como ninguém para assentar seus pontos de vista. Gass-Donnelly lança mão de enquadramentos que variam de um primeiro plano intimista, em que registra com eficiência o comportamento de seus personagens, a planos gerais que os inserem no contexto de isolamento buscado no roteiro, escrito em parceria com Colin Frizzell. Embora falto de grandes reviravoltas, a história consegue se sustentar amparando-se no vigor do argumento central e nas performances muito convincentes do trio de atores principais. É por aí que o diretor conduz a trama de modo a desatar o nó do arco dramático que os envolve em pouco mais de hora e meia, uma façanha se se toma a parte pelo todo e junta-se todas as peças desse imenso mosaico, como se entende a própria vida da anti-heroína da narrativa.

Abbie Cornish encarna com rara desenvoltura essa mocinha bastante  peculiar e cada vez mais introspectiva e misteriosa, tudo por causa de um evento trágico do passado. Sua Jane Rutter, fotógrafa de algum renome que se tornou conhecida por retratar casas abandonadas — a primeira grande metáfora do enredo, fundamental para que se deslinde a moral da trama —, sofre um acidente estúpido ao desviar de uma figura algo transcendental surgida sem explicação. Gass-Donnelly não o diz com todos os erres e esses (e se mantém assim ao longo do filme inteiro), mas a lógica nos autoriza a imaginar que se trate de um fantasma, e de alguém que Jane conhecera intimamente. A personagem de Cornish escapa da morte, mas passa a ter de lidar com uma amnésia temporária que transforma seu marido, Alan, de Diego Klattenhoff, e Alice, a filha do casal vivida pela encantadora Lola Flanery, em completos estranhos. Jane vai se recuperando aos poucos, contando com a assistência de Liam, o psicólogo interpretado por Justin Long, ao passo que digere a informação de que suas sinapses perigosamente nebulosas são resultado de uma lesão anterior, ocorrida quando ainda era adolescente. A força do trauma desencadeia nela imagens que nunca sabe se correspondem mesmo a um episódio de sua vida ou se são mais afetas ao terreno da alucinação, conjuntura que fragiliza ainda mais seu casamento e põe a vida da filha em risco.

Gass-Donnelly recicla a premissa do chileno-espanhol Alejandro Amenábar em “Os Outros” (2001) e fala de mortos que se negam a deixar o plano físico, vivos incapazes de superar as dores que os reduzem a espectros e atividades paranormais que tumultuam o cotidiano, como batidas à porta sem ninguém por trás, elucidando pontos nevrálgicos da discussão ao centrar fogo numa infantilização patológica de Jane. A repetição da frase usada numa brincadeira de criança de fato exaspera e se cogita uma possível limitação intelectual da protagonista, até que sobrevém a guinada que o público esperava e tira do limbo a reputação da personagem, vítima e algoz de si mesma.


Filme: Lavender
Direção: Ed Gass-Donnelly
Ano: 2016
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.