Filme na Netflix pegará seu cérebro emprestado por 2 horas e você nunca mais será o mesmo

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Poucas atividades no mundo do trabalho são tão estimulantes quanto o jornalismo. No princípio da carreira, repórteres começam a tecer as redes de contato com que vão se abastecer ao longo da trajetória profissional, e mesmo que não cheguem a conhecer ninguém de que valha a pena falar, sempre se levanta alguma história no mínimo excêntrica, que bem amadurecida depois de um tempo indeterminado na gaveta, pode se transformar numa matéria reveladora. Há profissionais que levam tão a sério a missão de informar seu público que terminam por achar um jeito de burilar seus textos participando diretamente do que é narrado, não importa do que se tenha de falar. O que um dia foi considerado um expediente no mínimo inoportuno, alvo de críticas das melhores cabeças da imprensa — e das piores também —, é hoje um estilo imitado mundo afora, sem que se dê o devido crédito ao idealizador da proeza. Não que ele devesse achar uma falta tão grave; o caso é que poucas vezes se chegou perto de superar seu talento, sua rara capacidade de entender o cenário que o rodeava e dele extrair tudo, o sumo e o bagaço. Principalmente o bagaço.

O ator e diretor Terry Gilliam, famoso pela franquia satírica “Monty Python”, reaviva o espírito de Hunter S. Thompson (1937-2005), o pai do dito jornalismo gonzo, em “Medo e Delírio” (1998), adaptação de “Medo e Delírio em Las Vegas”, originalmente publicado em dois tomos na revista “Rolling Stone” em 1971, e impresso no ano seguinte sob a forma de livro-reportagem. Antes de qualquer outra coisa, o trabalho de Thompson e Gilliam são manifestos vivazes à liberdade de expressão e de imprensa, artigos que se tornam raros em todo o mundo de tempos em tempos. O jornalista fora despachado pela “Rolling Stone” à cidade mais importante de Nevada a fim de cobrir um rali off-road de motociclistas, o Mint 400. Pouco a pouco, cresce no leitor a sensação de que Thompson foi se entediando daquilo, e houve por bem elaborar uma estratégia para manter o interesse de quem estava do outro lado. Munido de um estoque generoso de bebida, maconha, mescalina, ácido, cocaína e éter, trancou-se no quarto do hotel e deu asas à imaginação num relato vívido em que o fluxo de sua consciência alterada assume o comando e vira o protagonista da história. Seus registros passavam a valorizar desabridamente o nonsense, e quanto mais escrevia, mais clara se tornava a obscuridade de um homem que por alguma razão muito aceitável ia se embrenhando na selva de seu próprio espírito. Para nunca mais voltar.

O roteiro, de Gilliam, Alex Cox, Tod Davies e Tony Grisoni, aproveita passagens inteiras do livro de Thompson, uma das penas mais originais já vistas, e, claro, da igual destaque a Oscar Acosta, o fiel advogado que o acompanha. Acosta, aqui chamado de doutor Gonzo, se prestaria a uma espécie de superego de Thompson, mas não demora a também querer desfrutar do paraíso artificial buscado pelo protagonista, da mesma forma de posse de uma identidade alternativa, ou seja, Raoul Duke. Johnny Depp na pele de Duke e Benicio del Toro como o doutor Gonzo mostram uma afinidade surpreendente, malgrado os diálogos nem sempre os ajudem.

Nesse particular, há momentos em que a narrativa fica um tanto confusa, sobretudo para quem nunca teve contato com a produção de Thompson. O diretor faz desse limão uma limonada refrescante, acrescentando, por óbvio, os recursos com que o cinema se defende nessas ocasiões. À fotografia de Nicola Pecorini, rica de amarelos-manga e vermelho-sangue, somam-se as trucagens da equipe liderada por Joe Barden — a sequência que mostra o personagem de Depp numa de suas inúmeras viagens, essa num bar rodeado por dinossauros, é impagável —, com um resultado visual que contempla perfeitamente as expectativas de quem leu a versão original. A pletora de tipos que se agregam à trama, com destaque para Lucy, a personagem de Christina Ricci, e Gary Busey como o policial rodoviário que persegue Duke em dada altura, contribui para imprimir ao trabalho de Gilliam a necessária aura de caos, essência mesma do texto de Thompson.

As anotações de Thompson sobre “a aventura selvagem em busca do sonho americano”, e da frustração por não se encaixar nele, metamorfoseada em deboche, desbunde e autodestruição, entraram para a história do jornalismo literário já estabelecido por John Hersey (1914-1993), Truman Capote (1924-1984), Tom wolfe (1930-2018) e Gay Talese — decerto excepcionalmente talentosos, mas dândis além da conta. Hunter S. Thompson se matou com um tiro de espingarda na cabeça em 20 de fevereiro de 2005.


Filme: Medo e Delírio
Direção: Terry Gilliam
Ano: 1998
Gêneros: Drama/Comédia/Aventura
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.