Um obcecado em registrar as várias faces do amor, Franco Zefirelli (1923-2019) teve, como todo gênio em seu ofício, altos e baixos ao longo de quase meio século de carreira. Responsável por obras-primas do neorrealismo italiano, a exemplo de releituras das peças mais famosas de Shakespeare, como “A Megera Domada” (1966), e “Romeu e Julieta” (1968), além de versões para narrativas de fundo religioso, casos de “Irmão Sol, Irmã Lua” (1972), sobre um possível envolvimento amoroso entre os santos católicos Francisco (1182-1226) e Clara de Assis (1194-1253), e a minissérie “Jesus de Nazaré” (1977), lançada nos cinemas do mundo todo, o diretor sempre encontrava um meio de temperar suas histórias com a natural polêmica que cercou sua vida pessoal. Homem extraordinário que era, Zefirelli soube colecionar seus fracassos sem fazer da experiência desculpa para o quer que fosse, bem como também guardou para si o gosto das tantas vitórias, eximindo-se de alardeá-las em praça pública, cônscio de seu valor artístico e como indivíduo, mas de algum modo disposto a prestar a assistência de que novos postulantes a cineasta viessem a precisar.
A diretora Shana Feste talvez não tenha desfrutado da tutoria de Zefirelli, mas decerto sabia onde estava se metendo ao querer regravar “Amor Sem Fim” (2014), adaptado do romance homônimo de Scott Spencer, que sob sua batuta virou um filme sem dúvida bonito, mas eivado dos cacoetes da pós-modernidade, muitos deles respostas ao sufocante politicamente correto que infesta manifestações culturais de toda a ordem. Se o italiano já não apresentou nada de propriamente excepcional ao tentar fundir dois dos principais trabalhos do bardo de Stratford-upon-Avon, Feste fica ainda mais aquém das expectativas, muito por causa da assepsia indevida com que analisa um sentimento que chafurda com gosto na lama vermelha da concupiscência. A semelhança entre os dois para por aí; se Zefirelli era de uma competência incomum quanto a retratar namoros acidentados, matrimônios que experimentam episódios de infidelidade e famílias infelizes a sua maneira, sua pupila soçobra ao optar por nunca passar da superfície e exibir pessoas que teriam de demonstrar desespero, mas permanecem como que congeladas, indiferentes ao perigo que as rodeia.
O roteiro, uma parceria de Feste e Joshua Safran, primeiro se concentra no encontro de David Axelrod e Jade Butterfield, os personagens de Alex Pettyfer e Gabriella Wilde. Na noite da formatura do ensino médio dos dois, Jade é levada pelos pais, Hugh e Anne, de Bruce Greenwood e Joely Richardson, ao restaurante fino onde David trabalha como manobrista. Progressivamente, a diretora introduz elementos necessários para que se entenda que tipo de garota é Jade e por que passara três anos quase desconhecida junto aos demais alunos. Por outro lado, a imagem que se forma sobre David é a de um rapaz pobre, mas trabalhador, muito mais interessado em suceder o pai, Harry, na oficina da família que seguir para a faculdade. É justamente no personagem de Robert Patrick que reside o grande mistério acerca do mocinho vivido por Pettyfer, e nesse particular, o enredo guarda surpresas até estimulantes, todas vinculadas à deturpação do amor. Conforme a história avança, vai ficando claro que ninguém ali é exatamente um santo, o que não vem a ser problema. O bloqueio de Jade, por exemplo, decerto tem muito mais a ver com razões que apenas ela mesma pode elaborar, mas a diretora resume suas crises existenciais ora ao fato de ser superprotegida pelos pais, ora por causa da morte precoce do irmão mais velho há algum anos, momento em que, por coincidência o casalzinho se fixa na narrativa, com aquiescência relutante, mas sincera de Hugh. Até que David é desmascarado pelo pai da pobre garota rica.
Dez anos antes, Nick Cassavetes foi muito mais feliz ao se debruçar sobre as desventuras do amor de uma filha dileta da elite branca, anglo-saxã e protestante e um legítimo colarinho azul, como o lumpemproletariado é conhecido na América. “Diário de uma Paixão” (2004), inspirado no livro de mesmo nome de Nicholas Sparks, também orbita ao redor da atração de dois jovens exaustivamente declarados como habitantes de universos paralelos, mas Cassavetes, talentoso de pai e mãe, molda o texto de Sparks a favor de seu trabalho, aprimorando-o e dando aos personagens a sutileza e a densidade convenientes, aproveitando para não deixar margem para mal-entendidos: os dois só passam pelo que passam e chegam ilesos ao outro lado graças à certeza do amor insano que sentem um pelo outro. Feste sequer tenta imitar o esforço de Cassavetes, como se a trama ganhasse vida própria só por causa da beleza e do frescor juvenil de seus protagonistas. Se o amor fosse tão fácil como pensa a diretora, Shakespeare nunca teria sido um alegre cobrador de dívidas, não o maior dramaturgo da Idade Moderna.
Filme: Amor Sem Fim
Direção: Shana Feste
Ano: 2014
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 7/10