Um dos pensadores mais arrojados e complexos da história, Georg Wilhelm Friedrich Hegel deixou de legado à humanidade obras em que sugere a impossibilidade de compreender a natureza humana, uma vez que se cerca de conceitos os mais incongruentes entre si, quando não francamente opostos. A dialética, uma sequência de movimentos, atitudes e ideias que se contradizem em seus fundamentos, é uma constante na vida do homem; por meio de um cabedal de experiências pregressas, o ser humano torna-se capaz de decidir que caminho deve trilhar, apontando sem que seja necessária a interferência de outrem, em que medida essa nova linha de ação também pode ser-lhe ruinosa. Hegel defende que o aprendizado é inviável em condições que não fomentem a exposição de uma hipótese e sua consequente refutação, a antítese, que juntas, por sua vez, constituem a síntese acerca de dado assunto. A história mesma é feita de acertos que tomam corpo mediante erros e, analisados um e outro cenário, pode-se alcançar um prognóstico quanto ao que pode vir a acontecer num futuro imediato. No que tange à natureza particular do indivíduo numa esfera patológica, reconhecendo-se um ser único, qualquer relação com outros entes perde o sentido, circunstância a partir da qual o homem está apto a negar tudo o que lhe apresenta a dureza da realidade e criar seus próprios mundos. A essência se sobrepõe à existência da forma mais doentia que poderia encontrar, e o sujeito passa a estabelecer vínculos apenas consigo mesmo e com o que entende como sua consciência, sem se pautar pela mais pálida noção de alteridade. Para Hegel, mais que classificar as coisas e os seres como o que são, é preciso saber o que eles não são, negá-los, argumento a partir do qual se pode destituí-los de qualquer indício de normalidade e semelhança. A Revista Bula fez uma seleção de cinco filmes disponíveis na Netflix que ressaltam, cada um a seu modo, a atmosfera sinistra do homem, valendo-se do recurso de nunca permitir ao público saber ao certo qual será o próximo lance, histórias que já se tornaram clássicos do suspense em seus mais diversos matizes.
Todos ou, pelo menos, 90% da humanidade, tivemos problemas com nossos pais, em especial naquele inferno interior chamado adolescência. Tudo nessa fase da vida nos fede a conspiração universal contra nossos sonhos e a orientação de pais atentos é fundamental a fim de se manter a sanidade. Mas, e quando se tem uma mãe completamente descompensada, que devota sentimentos muito além de mero amor e zelo? “Fuja” expõe sem nenhum pejo a relação de uma mãe superprotetora e sua filha deficiente física Chloé, a surpreendente Kiera Allen, portadora de necessidades especiais na vida real. Chloé quer provar para a mãe que pode ser independente e levar uma vida normal, mas não tem a mais pálida ideia de como sua vida seguiu tal curso, que tudo poderia ter sido muito diferente e, o principal (sem spoilers, fique tranquilo): em que medida sua mãe é responsável pelo que lhe aconteceu.
Uma mulher acorda em uma cápsula criogênica, sem ter a menor ideia do que está fazendo naquele lugar. Completamente isolada do mundo, contando apenas com um dispositivo chamado MILO, para sobreviver ela precisa buscar no que resta de sua memória um jeito de se libertar antes que o oxigênio acabe. A história principia como um thriller de ficção científica, mas logo se mostra uma alegoria ricamente construída pelo diretor Alexandre Aja e a roteirista Christie LeBlanc de como está sendo a vida de muita gente ao longo da pandemia de covid-19, um cenário de mudanças indesejadas, incerteza, desespero e verdadeiro caos, em que nos vimos todos obrigados a repensar nossas prioridades a fim de não perder o fôlego.
O Meio-Oeste americano até parece o cenário perfeito para as narrativas de desintegração moral, violência, tragédia, caos, com seus personagens cheios de uma pretensa sabedoria cósmica advinda da mãe natureza, que na verdade, não quer perfilhar ninguém, muito menos o homem, que com o avançar dos anos tem se empenhado a degradá-la com mais e mais requinte. É o que se apreende das produções dos veteranos irmãos Coen e mais recentemente de um diretor que (ainda) passa ao largo do público e boa parte da crítica, mas cujo trabalho sem dúvida merece ser conhecido e admirado. Em “O Diabo de Cada Dia”, Antonio Campos se fixa nessa premissa a fim de contar uma história que degenera em caminhos tortuosos para um veterano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o filho dele, um reverendo implicado em casos de abuso sexual e um casal de assassinos em série nos anos 1950. Donald Ray Pollock, o próprio autor do livro a partir do qual o roteiro se desenrola, serve de narrador à trama. Pollock, um ex-operário e ex-motorista de caminhão em Knockemstiff, Ohio, deixou as funções que desempenhava aos cinquenta anos, quando conseguiu publicar “O Mal Nosso de Cada Dia”, em 2011. Campos sabe onde se meteu. Donald Ray Pollock está para Antonio Campos como Cormac McCarthy para os irmãos Coen: os três diretores bebem da fonte dos romancistas, cujas obras tratam da falta de rumo do homem, cada vez mais perdido e cada vez mais selvagem. Pode-se tentar desqualificar Campos sob o argumento de ser ele um mero adaptador de uma história cuja profundidade não alcança. Grosso engano. Seu cuidado na escolha dos atores, muito bem ambientados na aridez — metafórica e real — do coração da América (para não mencionar outra vez a assertividade do livro em que seu filme se baseia), são predicados justos o bastante quanto a capacitá-lo como um diretor, no mínimo, aplicado. Antonio Campos tem muita bala no tambor.
Meio a contragosto, Ray Monroe leva a mulher, Joanne, e a filha, Peri, para os três passarem o feriado de Ação de Graças na casa dos sogros. Ray faz uma parada num posto de gasolina a fim de comprar um refrigerante, conhaque e pilhas para o brinquedo com que Peri se distrai ao longo da viagem, mas o que seria algo completamente banal, logo se converte num pesadelo. A loja de conveniência não aceita cartões de crédito e Ray compra apenas o essencial, o que não inclui as pilhas. Volta para o carro, abre a porta traseira, derrama o refrigerante no banco, e entre uma e outra imprecação, Peri salta. Num crescendo da atmosfera de total imprevisibilidade da trama, um cachorro aparece, o que apavora a menina, que vai arredando, até que Ray, tentando afastar o cão, atira uma pedra contra o animal, mas assusta ainda mais Peri, que cai de uma altura considerável e baixa ao hospital. Depois de muita burocracia, Peri é atendida, mas ela e Joanne desaparecem sem deixar rastro. Ray começa a investigar por sua conta o que poderia ter acontecido com a família, mas é acossado por circunstâncias misteriosas, até se desvendar o que existe de macabro por trás da fachada do hospital.
Amy Dunne simplesmente some no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o marido Nick em desespero. Ele vai se descontrolando cada vez mais, abusa das mentiras que conta para a polícia a respeito da vida com a cônjuge e acaba se tornando o principal suspeito pelo desaparecimento. Sua irmã gêmea, Margo, se compadece dele e o ajuda. Enquanto tenta provar a sua inocência, Nick procura descobrir o que de fato aconteceu com Amy. “Garota Exemplar” corresponde às expectativas de um grande trabalho de David Fincher e, de lambuja, ainda fomenta uma discussão interessante sobre a vida a dois ao apresentar ao público um homem e uma mulher que já se amaram algum dia, mas se transformaram nas pessoas que outrora criticavam: o marido frio e a mulher neurótica.