Valendo-se de expedientes despretensiosos, lúdicos até, o filósofo ateniense Sócrates disse as grandes verdades que continuam a abalar o espírito do homem passados 2.400 anos de seu desaparecimento. A propósito desses axiomas irrefutáveis, com os quais todo indivíduo deve tomar contato o mais breve possível, o pensamento socrático apontava a natureza paradoxal que os envolvia, visto que o homem é feito de verdade, bem como de carne e alma, malgrado não poder nunca a alcançar, considerando-se a fragilidade de sua composição, plena de enganos, reducionismos, preconceitos, o que o leva a métodos defeituosos e, por conseguinte, resultados imprecisos. A busca pela virtude, em contraposição à onipresença do vício na existência do homem, deve ser uma empreitada incansável, e só dessa maneira, quiçá, tenhamos alguma chance de escapar do cárcere da ignorância e da ignomínia, irmãs siamesas que assombram a humanidade desde o princípio dos tempos, nos fazem sofrer e, destarte, nos empurram para um ciclo interminável — ainda que involuntário — de perversão e horror. É dessa maldade banalizada de que deveria fugir Tomasz, o personagem central de “Rede de Ódio” (2020), do polonês Jan Komasa, ainda que não perceba; caminho semelhante é o traçado por Martha Weiss, protagonista de “Pieces of a Woman” (2020), dirigido pelo espanhol Kornél Mundruczó, filme que honra a concepção de Sócrates quanto a desenvolver no público a necessidade (e o gosto) por perguntar, perguntar, perguntar. “Rede de Ódio”, “Pieces of a Woman” e outros quatro títulos — lançados entre 2021 e 2016, os seis na Netflix —, matam dois coelhos com uma única cajadada socrática: estimulam em nós a tergiversação no que diz respeito a bater o martelo sobre o querem dizer essas histórias e nos lançam na cara nosso desconhecimento acerca do homem, ou seja, de nós mesmos.
Consciência de classe. Consciência política. Consciência humanística. Todas essas noções perpassam o drama de Aaron Sorkin. No longínquo 1968, uma manifestação pacífica contra a Guerra do Vietnã degringolava em pancadaria. A polícia reprime o protesto com violência desproporcional. No ano seguinte, o FBI indicia sete militantes políticos por conspiração. O julgamento leva mais de cinco meses, entre ameaças a testemunhas, ofensas ao juiz e espancamento de réus nas dependências do próprio tribunal. As vidas deles nunca mais retomam o ponto de origem, mas… será que era mesmo boa a vida que eles levavam antes? Deveriam ter voltado atrás em suas posições? Ou todo o caos valeu a pena? Vale a pena ter a vida revirada por causa da tal consciência? Essas são algumas das perguntas que “Os 7 de Chicago” nos suscita, tão sutilmente quanto um martelo nas mãos de um ferreiro.
É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.
“Rede de Ódio” já impacta pelo nome. Certamente não foi por acaso que optou-se por traduzir com essa expressão o título da produção polonesa, “The Hater” no original, ou “o que odia”. O filme de Jan Komasa deve muito de sua genialidade ao personagem principal, mas ampara-se, por óbvio, no contexto histórico em que está inserido e da época em que vivemos, no Brasil, sobretudo. O uso deturpado da inteligência artificial — cada vez mais inteligente, ao passo que o homem, por sua vez, parece emburrecer a olhos vistos — fomenta a discussão sobre em que medida um indivíduo agressivo pode se dizer afetado pela toxicidade da internet ou se sua truculência é fruto de sua própria natureza patológica. Komasa explora essa dicotomia — logo resolvida, em face da superioridade da segunda hipótese — à luz de Tomasz, que sai do interior da Polônia para a capital Varsóvia a fim de estudar direito, graças à generosidade de familiares distantes. O rapaz não é simplesmente ambicioso, e a perspicácia do diretor aliada ao talento soberbo de Maciej Musialowicz, desde sempre deixam muito claro que está ali um sociopata que, como quase sempre sói acontecer, é um sujeito cuja capacidade intelectual supera a de quem o rodeia. Ele se vale das facilidades que as redes sociais proporcionam para levar a termo os objetivos que busca alcançar, sem poupar quem quer que seja. Não se deve deixar passar nada ao longo das 2h15 de duração da trama, que oferece uma mensagem edificante, sem ser — ou parecer — moralista. Há que se estar sempre atento para os Tomasz que nos apresenta a vida.
Em 1962, no meio da crise dos mísseis cubanos durante a Guerra Fria (1947-1989), o americano Joshua Mansky, enxadrista famoso no mundo inteiro, se prepara para desafiar Alexander Gavrylov, campeão do esporte na União Soviética. O adversário de Gavrylov seria Konigsberg, que morreu em meio ao andamento do torneio, o que quase implica no desfecho da competição. Acontecimentos sinistros também colhem o substituto de Konigsberg: sete dias antes, Mansky, gênio da matemática que perdeu tudo por causa do alcoolismo, fora sequestrado ao sair de um bar, sedado e levado num voo para a embaixada dos Estados Unidos em Varsóvia, capital da Polônia, uma das repúblicas socialistas soviéticas. Stone, White e Novak, agentes da CIA, órgão de inteligência americano, são incumbidos de investigar o que realmente está por trás dos crimes envolvendo os dois ases do tabuleiro.
“Cities of Last Things” tem início com o suicídio de um personagem sobre o qual não se sabe nada; a partir de então, a história segue em ordem contracronológica, se debruçando sobre três eventos de destaque para Zhang Dong Ling, o personagem cuja morte, agora se pode ter certeza, se constituíra no ponto de partida do filme. Os três momentos da narrativa têm o seu gênero próprio: o primeiro, uma ficção científica, é ambientado em 2049, quando nada mais pode dar certo e reina a distopia; o segundo é um filme noir que esmiúça o desempenho de Zhang quando ele era policial; e o terceiro, um enredo melodramático que se concentra num inusitado encontro do menino Zhang com um mafioso.
O suspense do diretor Jang Hang-jun vem confirmar a trajetória ascendente do cinema sul-coreano. A narrativa do ótimo “Rastros de um Sequestro” gira em torno de Jin-Seok, que acaba de se mudar com a família para uma casa nova. Certa noite, o rapaz presencia o sequestro do irmão mais velho, Yoo-seok, que volta 19 dias depois, sem se lembrar de nada. A reação de Yoo-seok poderia ser entendida como natural frente a tamanho choque, mas Jin-Seok começa a estranhar o comportamento dele e o fato de o irmão sempre sair a altas horas. Convencido de que a pessoa que passou a conviver com a família não é Yoo-seok, o protagonista decide investigar o caso por conta própria.