Homem-Aranha: Longe de Casa, um dos filmes mais aguardados pelos usuários acaba de estrear na Netflix Divulgação / Sony Pictures

Homem-Aranha: Longe de Casa, um dos filmes mais aguardados pelos usuários acaba de estrear na Netflix

A transição da adolescência para a vida adulta consegue ainda mais traumática que a virada da infância para essa fase em que tudo se transforma num motivo para brigar. Como sói acontecer quase sempre, no momento em que parece que estamos dominando a situação, segurando o leme com firmeza diante de um oceano de possibilidades pouco alvissareiras, chega a hora de singrar mares muito mais profundos, muito mais revoltosos, dos quais ninguém escapa e que conduzem a um porto a que se desembarca de maneiras as mais diferentes, em pouco tempo ou depois de uma viagem algo sossegada ou francamente desafiadora. A experiência que se adquire na etapa anterior é, por óbvio, muito apreciada, mas a verdade é que por volta dos dezoito anos, se apropriam do espírito humano ímpetos que, por mais estimulante que tenha sido a aurora de seu tempo, não poderia se libertar sem que pagasse um preço alto demais. É por razões como essas que a maioria esmagadora das pessoas refere-se à adolescência como um período conflituoso, justamente por encontrar do outro lado um cenário de muito mais serenidade frente a complicações inestimáveis, mas que podem ser equalizadas graças à experiência, que por seu turno não cai do azul. É preciso viver para saber viver.

“Homem-Aranha: Longe de Casa” é um caso típico de filme maior que a franquia que lhe dá origem. Jon Watts, diretor dos três filmes mais bem-cotados do super-herói da Marvel, os três protagonizados pelo carismático Tom Holland, redobra a aposta e segue mostrando Peter Parker, a persona civil do mutante, na pele de um garoto como outro qualquer, desesperado para ter uma vida como a de uma pessoa qualquer, mas acossado por problemas em escala global, que ele, evidentemente, não criou — o que decerto faz toda a diferença junto ao público, que se identifica ou consigo mesmo hoje ou com quem já fora um dia, perto ou longe na régua do tempo. Watts vale-se do roteiro dos tarimbados (e premiados) Chris McKenna e Erik Sommers a fim de atacar as mazelas da existência de um personagem que precisa urgentemente renunciar a seu lado fantástico e assumir de vez e em caráter exclusivo a pedestre humanidade. E é aí que os problemas começam.

O afastamento compulsório de McKenna e Sommers de etapas fundamentais na pós-produção degringolou em falhas de continuidade que passam em alvas nuvens para o grande público, mas que os fãs do super-herói mais low profile do cinema, sobretudo os puristas, não jogam para escanteio. Peter, por exemplo, já não conta mais com o padrasto, mas se mantém uma rocha de autoconfiança banhada de otimismo por todos os lados, mesmo que sua esperada  imaturidade nunca abdique da relevância ao longo da narrativa; antes disso ainda, a abertura metalinguística em que dois nerds adolescentes prestam um tributo a outros personagens da Marvel, como o Capitão América de Chris Evans, e a Viúva Negra eternizada por Scarlett Johansson, sugerindo que todos eles tenham partido dessa para outras aventuras no além-mundo, fica entre a farsa, o deboche e a provocação barata. O moleque parece mesmo ter se decidido a botar as garras de fora.

Sem querer parecer tedioso, o achado no filme de Watts é mesmo a escolha por voltar todas as baterias para o súbito acesso de independência de Peter quanto a própria trajetória. Holland empresta a seu protagonista o ar ingênuo de que o Homem-Aranha vai sendo investido, característica francamente menosprezada em produções ao longo dos anos 1970 e 1990, quando nunca se pensaria em alguém louco o bastante a ponto de renunciar à vida extraordinária de um homem muito acima da média, cujo propósito é nada menos que a salvação do gênero humano. A tabelinha que compõe com Zendaya, a MJ mais cheia de personalidade de todos os tempos e sua namorada à época — a relação começou a fazer água justamente nos bastidores dessa produção, com acusações mútuas de infidelidade —, deixa a história especialmente saborosa, para não mencionar, por muito mais evidente, o impecável trabalho de edição de Dan Lebental e Leigh Folsom, ágil, metódico e orgânico no enredo ao privilegiar as vistosas acrobacias do personagem central ao longo de quase 130 minutos sem provocar vertigem no espectador não-iniciado. A entrada em cena do monstro aquático criado por Alexis Wajsbrot, supervisor de efeitos especiais da Marvel, que ameaça varrer Veneza do mapa, é sem dúvida o apogeu estético de “Homem-Aranha: Longe de Casa”, que continua marcando gols de placa ao expor as interações do herói com Quentin Beck — ou Mysterio, como ele prefere —, o vilão dissimulado de Jake Gyllenhaal, e o aliado (e paranoico) Nick Fury, de Samuel L. Jackson, cada vez mais pesado e inconveniente.

Passagens de humor involuntário não chegam a empanar tudo o que Jon Watts tem feito nos últimos cinco anos e, claro, seu filme tem final feliz — até a reviravolta de “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa” (2021), decerto a cereja do bolo, graças a veteranos como Willem Dafoe e a abnegada May Parker da onipresente Marisa Tomei.


Filme: Homem-Aranha: Longe de Casa
Direção: Jon Watts
Ano: 2019
Gêneros: Ação/Aventura/Ficção científica
Nota: 9/10