Na encruzilhada do Brasil Profundo: entre serestas e Villa-Lobos Foto / Selma Giorgio

Na encruzilhada do Brasil Profundo: entre serestas e Villa-Lobos

Durante boa parte dos anos em que frequentei a faculdade, localizada no subúrbio de São Cristóvão, em Sergipe, dividi com amigos de sala, vindos de tantos estados do Brasil, muitos encontros de bebedeira. E não raro, ensaiei convidá-los a ir às serestas do bairro, onde também fiz muitos amigos entre os moradores dali. Eu ia porque amava a música brega, me lembrava de minha infância, no final dos anos noventa. Alguma coisa de um “Brasil real”, distante da bolha que nos cerca o ambiente universitário.

Muitos dos meus colegas se desconcertavam com a proposta. Riam, me puxavam para outro lugar; outros, se animavam a ir, incitados pela possibilidade de uma noite exótica naquelas ruas tangentes, que lhes renderia, certamente, muitos casos para contar. Mas pouco ficavam além de uma hora. Era-lhes estranho demais os batons carmins, os dramas espontâneos das senhorinhas bêbadas, e de tantas outras figuras que lhes pareciam saídas de um filme brasileiro dos anos setenta. Raras vezes percebi de alguns deles que se sentiam realmente à vontade ali e, sem surpresa, me contavam, depois, algumas memórias de suas cidades, das festas que seus avôs sanfoneiros faziam, etc. Para eles, assim como eu, se tratava de saudade de casa e, claro, de muito entretenimento!

Os amigos seresteiros, por outro lado, viam que esses convidados ilustres, de tão raros ali, deviam ser muito humildes e eram, em geral, recebidos com muita simpatia, entre aqueles vizinhos que já se conheciam há muito tempo.

Mas vi, muitas vezes, “Raquel e seus teclados”, Devinho Novaes, e até mesmo ídolos consagrados como Gonzaga e Waldick Soriano, serem ouvidos, sem que se levasse a sério, para fazer graça com uma ou duas de suas canções. Observações miúdas como essas, com alguma reflexão, nos dizem mais. E o que melhor senão a música para que se represente a distância incômoda entre o Brasil e o que se chama de “Brasil profundo”?

Expressão que nos convoca a lembrar da densidade cultural desse país. Que nos fala de suas terras a perder de vista, com costumes de todo tipo, que fogem da estética que nossa classe média prima. Villa-Lobos, o nosso compositor erudito, esforçou-se por traze-lo à superfície. Idealizou em suas composições a exuberância da cultura arraigada na realidade pouco conhecida dos conterrâneos cosmopolitas, mas que representava a origem de nosso inconsciente coletivo — do povo brasileiro —, incitando-nos, através de sua música, o despertar do nosso orgulho.

Assim como Villa, também, me apaixonei pela “caricatura do Brasil”, pela familiaridade com que nos relacionamos, buscando a linguagem e os ritos que eram só nossos. Certamente, ser pobre, em uma cidade pequena, quando as relações ainda não estavam informatizadas, me possibilitou ter uma perspectiva mais próxima dessa cultura “vulgar”, ao ponto de dar-me conta de que esses elementos não compõem o enredo de uma fábula, mas são, apenas, os gostos comuns, com que se identificam a maior parte dos brasileiros.

Não há, pois, nesse sentido um Brasil profundo. O termo, apenas, alude, entre outras coisas, à realidade cultural dos pobres. Também, é comum que seu emprego esteja associado a um destino geográfico, no mais das vezes, o norte, nordeste e, em menor medida, o centro-oeste, na zona pantaneira, e cujos traços, se conformaram no que representa a identidade nacional.

Portanto, faz parte do conjunto de ideias que alimentam os nossos mitos de origem; o passado de uma nação que se pulveriza nas muitas camadas do Brasil de hoje, mas que de uma ou outra maneira, encontra sua origem em comum na pobreza, na luta e no desbravamento das suas terras. E com que ânimo os valores e costumes extraídos deles são evocados por tantos compatriotas quando querem traduzir o que é o Brasil, em seus intercâmbios na Europa.

Por outro lado, em um país com dimensões territoriais como o nosso, o “profundo” também nos lembra de que muito do que acontece, em porções do território, nessas camadas populares, foge às vistas do Estado, numa realidade paralela em que a impunidade deixa as suas vítimas. Tabus como a exploração sexual de menores, o tráfico de órgãos, a adoção ilegal, o garimpo, os bandos armados, etc, compõem o enredo deste Brasil que vez ou outra nos alertam os jornais, em suas reportagens especiais.

Todavia, quer seja em sentido positivo ou negativo, como mito ou denúncia, esse Brasil do qual falamos é visto por sua distância e por sua excentricidade em relação aos centros urbanos; locais onde se supõe que o presente e o futuro se abraçam, através da prosperidade econômica, em sua cultura secular. Não! Aquele Brasil, o “outro”, “o profundo” é apenas o emblema do passado que sobrevive em nossos dias, guardado pela “miséria”.

No entanto, pouco vejo desse “Brasil profundo” que me seja estranho, talvez porque o encontrei na esquina de casa, entre os conhecidos, nas ruas das cidadezinhas de vinte mil habitantes, que tem seu lazer nas serestas de sábado e nas festas de comunidade, etc. Quantas procissões em homenagem ao padroeiro São Sebastião! Quantas rezas para Santa Luzia na casa de minha vó. Esse Brasil não é excêntrico, não me deixa constrangida, nem o ponho no pedestal das lendas; é apenas aquele que me desperta a saudade do que vivi, quando estou ilhada no quartinho onde moro. E sei onde encontrá-lo, percorrendo o caminho de casa.

Quanto àqueles que se deslumbram com o sonho cosmopolita, do profissional liberal, cada vez mais se assombrarão com o quanto esse “Brasil profundo” invade as suas calçadas, nos calçadões do comércio, nos carros de som, na internet, nas tantas pizzarias populares, nos botecos em cada esquina, etc.

Sei, então: o Brasil é uma promessa. Assim o entendemos bem, quando buscamos alguma referência de seus potenciais. E talvez, por isso, tenhamos a sensação de que seja mais um sonho do que uma realização colhida em termos de prosperidade. Mas é na vida ordinária onde mais se realiza o apego do brasileiro à sua ideia de nação, e se desperta o sentimento, através de seus ditados, de sua música e de seu jeito familiar. Por isso, que o povo é o maior patrimônio de sua identidade.

Mas também, muito se conformou a tratar a pobreza como o enredo de sua lenda. Os populares, todavia, que vivem sua história, não como mito, mas como realidade, não percebem o quanto são vistos por excêntricos quando se fala desse “Brasil profundo”, como se fossem um resquício do passado que deve ser superado para se tornar apenas a paisagem lúdica, que inflama o desejo por esse sonho. Vivem as suas vidas, pouco importando se riem de suas serestas e de suas roupas.