Fazer o bem deveria ser a única escolha diante da obviedade de se viver tão perto de alguém cheio de carências. Entretanto, um homem especial passa ao largo da benevolência de uma comunidade ordeira e piedosa da Carolina do Sul, até tornar-se alvo da atenção de quem menos se poderia esperar. Todavia, como nada é perfeito, o que seria um gesto de caridade começa a ser encarado como uma manobra de autopromoção, o que envenena um tanto a relação desse homem e seu benfeitor, que só resiste porque verdadeira — e apoiada pela família desse humanista autodidata. Aos poucos, como se fossem membros de um mesmo organismo, essas partes tornam-se ainda mais ajustadas, compondo um todo inquebrantável, que cresce, toma conta das mentes e dos corações, feito se o mundo estivesse sendo, enfim, submetido às transformações de que tanto precisa. O mundo é muita gente, e leva algum tempo até que todos nos convençamos de que somos mesmo uma grande família, ligada por um elo incorpóreo e forte demais para se romper só porque um ou outro ressentido assim o deseja.
Michael Tollin toma a história real de James Robert Kennedy (1947-2019) para construir uma das grandes pièces de résistance do cinema engajado, por si só pródigo de filmes em que o mote central virando o personagem mais importante. O simples fato de Kennedy, que se apresenta como Rádio em referência ao objeto de sua devoção, seguir vivendo, ano após ano, sem que nenhum dos habitantes de Anderson, no noroeste da Carolina do Sul, ao menos tome conhecimento de sua existência, já é um sintoma de que algo vai mal naquele lugarejo perdido no mapa. É necessária a interferência de um cidadão aparentemente ensimesmado, cheio de suas próprias questões, mas admiravelmente sensível aos problemas da cidadezinha onde mora, para que desponte alguma chance de mudança, ainda que pontuais, mínimas e quase irrelevantes, e o principal, que não se curva aos desmandos de quem quer que seja, nem às opiniões de gente bem-intencionada. Malgrado o apelido estranho e a personalidade inicialmente dada ao isolamento, Rádio é um ser humano como qualquer um ali, com suas dores e suas bênçãos. É assim que esse seu novo e único amigo o vê e é assim que ele exige que Rádio seja visto por todos.
Como de hábito, o protagonista do filme de Tollin fazia suas rondas silenciosas por Anderson, coletando um ou tesouro do lixo e, claro, tomando pé do que acontece no mundo para além de seu espírito impenetrável por meio de um rádio de mão. Cuba Gooding Jr. deixa à mostra um lado humanístico de que Rádio nunca suspeitara ser dotado, o que confere a seu personagem a substância fina de que são constituídos tipos assim. Logo vem à lembrança o trabalho de Tom Hanks em “Forrest Gump — O Contador de Histórias” (1994), levado à tela por Robert Zemeckis, ou a performance igualmente perturbadora de Dustin Hoffman em “Rain Man” (1988), dirigido por Barry Levinson, e exatamente como nesses enredos, o roteiro de Mike Rich se vale de um escada de peso, sem o qual o talento de Gooding Jr. restaria muito limitado.
A tarimba de Ed Harris como Harold Jones, o treinador da equipe de futebol americano de Anderson, ajuda a fazer de Rádio uma figura realmente verossímil, a despeito de ter existido mesmo, como as cenas que abrem os créditos finais testemunham. A solidão daquele homem infeliz o remete a seu próprio retraimento social; não margem para se crer Jones como homem bom, mas alguma coisa em seu temperamento não fica suficientemente esclarecida. Parece que a vida para ele só se realiza de todo quando perto de seus jogadores, liderados por Johnny. É precisamente com o personagem de Riley Smith, filho do banqueiro Frank, de Chris Mulkey, que Jones dá azo ao grande conflito da trama, momento em que sua empreitada filantrópica quase faz água. O apoio incondicional da mulher, Linda, interpretada por Debra Winger, e o suporte ainda mais comovente da filha Mary Helen, de Sarah Drew, são o impulso que lhe faltava para peitar a resistência de quem deveria louvar sua iniciativa. No fim, é em Jones que Rádio tem seu único esteio, o treinador sempre soube disso. Quiçá tenha sido essa a razão de sua insistência nada racional.
Filme: Meu Nome é Rádio
Direção: Michael Tollin
Ano: 2003
Gênero: Drama
Nota: 9/10