O Professor do Desejo, de Philip Roth, uma sátira sem freios sobre o instinto mais primitivo do homem: o sexo

O Professor do Desejo, de Philip Roth, uma sátira sem freios sobre o instinto mais primitivo do homem: o sexo

Luxúria e vaidade são pecados de interesse quase unânime, independe de classe social, status cultural ou lugar, do mundo. Não devíamos perder tempo e dinheiro com livros de terceira categoria para apreciá-los bem; devíamos ler logo “O Professor do Desejo”, de Philip Roth. O autor é bem conhecido no Brasil, onde parte expressiva de sua obra — incluindo os principais trabalhos — foi traduzida pela Companhia das Letras.

Nascido em 1933 e falecido em 1918, Roth é um dos grandes escritores norte-americanos dos últimos cinquenta anos. Seu primeiro romance, “Adeus Columbus”, foi publicado em 1959, mas sua fama só se espalhou com o terceiro livro, “O Complexo de Portnoy”, de 1969. Deve a este, em parte, sua iminência literária, associada ainda à trilogia da maturidade “O Teatro de Sabbath” (1995), “Pastoral Americana” (1997) e “A Marca Humana” (2000). Logo abaixo há uma porção de trabalhos menos robustos e nem sempre unânimes, sendo possível compor uma seleção de valor intermediário que incluiria “Operação Shylock” (1994), “Nêmesis” (2010) e “O Professor do Desejo” (1977). O hedonismo é a filosofia não professada por trás deste último romance, aqui analisado.

O Professor do Desejo, de Philip Roth (Companhia das Letras, 256 páginas)

Traduzido por Jório Dauster, “O Professor do Desejo” divide-se em quatro partes e pode ser decomposto em 12 histórias menores que narram a infância, a vida familiar, universitária, o tratamento psiquiátrico, as amizades (Herbie Bratasky, o casal Schonbrunn e o poeta Ralph Baumgarten) e os casos amorosos de David Kepesh, em sequência: Birgitta Svanström, Helen Baird e Clarissa Ovington. Nove dessas doze histórias relacionam-se diretamente com o hedonismo do protagonista, sendo que os três casos de amor fornecem os elementos para uma reflexão sobre aqueles pecados tão atraentes, em particular o sexo. Em termos adjetivos empregados pelo próprio Roth, Helen corresponde à “impetuosidade”, Claire à “constância” e Birgitta (“para quem a carne existia a fim de ser investigada como fonte de novos prazeres”) corresponde obviamente à lascívia.

Ferozmente autoirônico e sarcástico, Philip Roth é também um galhofeiro de marca maior, e essa é uma das razões de por que nos parece uma experiência literária vital. “Vital” aqui não é empolação retórica, já que a vida seria insuportável sem a catarse do riso, arte que o escritor domina à perfeição. Um exemplo de alto humorismo é dado por aquelas cinco páginas em que Helen, primeira esposa de Kepesh, convida o senhor Donald Garland para um jantar, em casa. Não há quem não se divirta com o deboche homofóbico de seu marido para cima das frivolidades que animam Helen Baird e seu amigo septuagenário, enquanto nosso herói e testemunha do diálogo é puro tédio. Philip Roth é quase permanentemente irônico, e no auge essa ironia converte-se em gargalhada.

Muitos autores têm a mesa causticidade de Philip Roth sem nem de longe possuir verve humorística semelhante. Um exemplo da mesma geração é J. M. Coetzee, Nobel de Literatura de 2003. Coetzee possui força estética similar e criou um estilo todo pessoal, ainda mais memorável que o do seu colega dos Estados Unidos. Seus romances parecem ser escritos como se fossem roteiros. É pena que ninguém jamais ri (nem é essa a proposta) da prosa sincopada, seca e triste do ficcionista sul-africano. Pelo menos em “Homem Lento” (2005) e em “Verão” (2009), falta ainda a segunda grande qualidade do norte-americano: o erotismo exuberante, consumado. Nos dois casos os protagonistas são homens castos, para quem a sexualidade parece ser coisa de outro mundo. Em “Desonra” (1999) encontramos algo diferente: um homem devasso, uma reação deliberada de Coetzee contra a castração imposta pela sociedade, tão marcante nos romances do seu colega. Nisto dialoga com Roth, gênio do erotismo, da comédia e, necessariamente, do equilíbrio. Porque escrever sobre sexo é tão arriscado quanto fazer piada. Ainda assim, os sentimentos associados a Eros (amor, paixão, desejo) são tão fundamentais à nossa existência quanto o humor, não por acaso uma qualidade indispensável às relações pessoais de sucesso.

Como qualquer outro assunto relevante na história, também o erotismo importava aos gregos; sempre eles. Aristipo de Cirene (séc. V a.C.) é considerado o primeiro discípulo de Sócrates. Seu nome é dos menos conhecidos entre os pensadores clássicos. Uma das razões é porque seus escritos não chegaram até nós: como a maior parte do conhecimento antigo, o que sabemos de sua filosofia é mediado pelos comentaristas. Ao obscuro Aristipo devemos a teoria segundo a qual o prazer corporal constitui o bem supremo de nossas vidas, teoria que ficou conhecida como hedonismo. É claramente a filosofia do “autêntico eu” de David Kepesh, de Alexander Portnoy e de Mickey Sabbath, personagens anticonvencionais, cínicos e debochados. São também viciados em sexo, tarados, pervertidos. Francamente adeptos do prazer carnal, vivem em permanente busca pela satisfação erótica na sua forma mais primitiva. Fica a suspeita, portanto, de que o próprio Philip Roth é um grande hedonista, capaz de converter o prazer em substância poética condigna de qualquer “elevação do espírito”, para usarmos uma elegante expressão de E. M. Foster.

Não é uma referência casual. Pois E. M. Foster, refinadíssimo crítico inglês, acredita que o amor é um dos cinco fatos principais da existência humana (cf: “Aspectos do Romance”, 1927). Contudo, não é tão entusiasmado quanto Aristipo de Cirene em relação ao prazer físico, manifestando curtíssima paciência com Eros, enquanto matéria romanesca. Porque ninguém, salvo os viciados, passaria o dia inteiro preocupado com o sexo, cujo espaço em nossa vida seria reduzido a relações casuais; às vezes, até inexistentes. Parece-lhe um assunto tão apelativo e vulgar que, de fato, a literatura cor de rosa, comercial, poderia se encarregar dela inteiramente, sem nenhum prejuízo. Na opinião de E. M. Foster, Eros “sobrecarrega” os romances, causa-lhes “mal” e torna-os “monótonos”.

Há duas razões para os romancistas entupirem de amor suas histórias, segundo o crítico inglês: a primeira é involuntária e tem a ver com uma sensibilidade para essa experiência que “não teria paralelo na realidade” (o que é contraditório, já que o próprio Foster admite a artificialidade da boa ficção). E aí o reforço daquela sugestão aludida: “Creio que este seja o reflexo do estado mental do próprio romancista, quando ele escreve, e que a predominância do amor nos romances se deva em parte a isso”. Parece fazer sentido no caso de Philip Roth, ao criar o professor de literatura comparada David Kepesh, interessado nas “conexões existentes” entre os romances e a vida. De sorte que o amor, sobretudo em sua forma sexual — a mais suspeita para Foster — é o leitmotiv de livros excepcionais como “O Complexo de Portnoy” e “O Professor do Desejo”, além de ser um elemento ostensivo na complexidade maior de “O Teatro de Sabbath”. Isso já é o bastante para evidenciar uma tendência autoral.

Nem Aristipo de Cirene nem E. M. Foster são objetos de estudo do curso de Literatura “Desejo 341”, que Kepesh partilha com o leitor: um conjunto de saborosas reflexões morais extraídas de suas efetivas experiências amorosas, temperadas por uma rica bibliografia ficcional. O libertino acadêmico prefere a companhia de outros professores do desejo; na realidade seus mestres: além de Kafka, Anton Tchekhov ajuda-o a refletir sobre o que denomina “falácia libidinosa”, identificada em vários contos do autor russo (além de Tchekhov, Roth gosta de citar Tolstói, aos pés de quem teria “aprendido tudo o que sabe”). O casamento entre David e Helen, aliás, começa onde termina conto “A Dama do Cachorrinho” (tema da “desilusão romântica”, proporcionada pelo casamento), sobre as expectativas pós-nupciais. A realidade conjugal de fato estraçalha as ilusões. Segundo o professor aprendiz, cada frase dos contos de Tchekhov “parece aludir à minha triste situação”. Com efeito, a complexidade da vida, referida por E. M. Foster, confere verdade ao drama de David Kepesh.

Obviamente, “O Professor do Desejo” é muito mais do que apenas paixão, sexo e dinheiro. É também um livro sobre literatura e sobre influências literárias. Indo além, Anton Tchekhov e Franz Kafka têm aqui uma importância tão capital quanto a libido. Roth oferece a seguinte interpretação de “O Castelo”: “só posso comparar a obstinação total do corpo, sua fria indiferença e desprezo absoluto pelo bem-estar da alma, com um regime totalitário incontrolável”, diz David Kepesh a um interlocutor, em visita ao túmulo do escritor de Praga. O tema talvez inconsciente de “O Castelo” seria então “o bloqueio erótico de Kafka”, opinião que projeta a frustração pessoal de David Kepesh, incapaz de satisfazer seus intensos apetites carnais.

Ainda sobre as influências, uma curiosidade: David compara Helen a Brett Ashley, de “O Sol Também se Levanta”. Nesse caso o leitor pinça o capítulo 7 do romance de Ernest Hemingway e se surpreende: gira em torno de um encontro entre Jacke Barnes, Lady Brett e o Conde Mippipopoulos, numa cena doméstica que parece ter inspirado o jantar entre Kepesh, Helen e Donald Garland, em “O Professor do Desejo”. Além disso, as afinidades e o estilo de vida daqueles personagens se parecem muito com a de Helen, Donald e seus amigos gays. Helen é a Brett Ashley de Philip Roth.

Os romances de Roth contrariam aquela ideia de sobrecarga, monotonia e facilidade que Foster impinge à paixão carnal. Provavelmente porque Roth não satisfaz o segundo motivo que, segundo o renomado crítico inglês, leva os romancistas a gostarem tanto do assunto: o fato do amor sempre oferecer “um desfecho conveniente para um livro”. Ora, nenhum dos personagens aludidos conclui a própria aventura de forma conveniente: com certeza serão todos infelizes para sempre, com seus respectivos objetos de adoração. Mesmo Clarissa Ovington, a segunda mulher com quem se casa, possibilita a Kepesh uma plenitude cheia de receios, apenas circunstancial.