Inteligente, perspicaz e premiado, o filme ignorado da Netflix que você certamente não assistiu Julian Torres / Les Films Velvet

Inteligente, perspicaz e premiado, o filme ignorado da Netflix que você certamente não assistiu

Não obstante imprescindível para que a vida em sociedade tenha alguma chance de prosperar, enquadrarmo-nos a regras estabelecidas desde muito antes de nossa chegada ao mundo, a fim de que seja possível suportarmo-nos uns aos outros, não tem quase nada que remeta, ainda que palidamente, à ideia de prazer. Biologicamente animal como outro qualquer, o homem só espelha a própria natureza, pela razão óbvia e inescapável de que também é parte dela e de sua, indisciplina, de sua alma selvagem, de seu caos. Absorver essa falta de ordem e aceitar o mundo como ele na verdade se constitui, insensível, avesso a delicadezas, contrário a reações civilizadas, perverso, é uma boa estratégia para não sofrer — ou para sofrer o mínimo possível —, ao mesmo tempo em que somos dotados da capacidade de pleitear outro destino, uma vida cuja dignidade corresponda à nobreza que encerra o propósito de viver, quando as circunstâncias mais abjetas perdem a importância que foram adquirindo ao longo dos anos, ao menos para nós, e vão deixando de ser tão corriqueiras e tão naturais, sempre foi o sonho impossível da humanidade, paradoxal ao querer estruturar o conceito de harmonia interior apesar de toda a insânia que nos cerca, de toda pulsão de morte e de toda a destruição implícita em cada coisa. Esse é um raciocínio com que certas pessoas lidam melhor que outras, é inquestionável, como ninguém ousa discordar que elaborar essa atitude diante da vida é muito mais fácil enquanto nos socorre a inconsequência santa da juventude, que permite errar, errar e seguir errando, e com cada erro transformar em flor as muitas pedras no caminho.

O encontro de duas realidades, antagônicas, mas que se unem e formam um só todo, fortalece duas jovens que acendem para a vida, cada uma a seu modo. Enquanto uma se bronzeia seminua, estirada diante do mar da costa oeste França, a outra assiste àquilo entre atônita e fascinada, sem conseguir não pensar sobre seu próprio futuro, mas também sem ter ideia muito nítida quanto ao que fazer de todo o tempo que ainda lhe resta. “A Prima Sofia” (2019), de Rebecca Zlotowski, fala a essa imagem do sensual e do estritamente filosófico; é físico, mas também cerebral — e um e outro desses predicados toma forma sob a figura de uma jovem e bela mulher. De um lado a personagem-título, incorporada por Zahia Dehar, é o próprio cinismo que a vida encerra, sobretudo quando não se tem o peso dos anos sobre as costas. Sofia viaja de Paris, onde mora, até Cannes, na costa leste da França, a fim de passar o verão com a prima, Naïma, de Mina Farid, tambem excelente. Naïma mora perto do hotel em que a mãe, Dounia, de Loubna Abidar, dá expediente como camareira, e as duas dividem um apartamento digno, mas modesto, além da convivência pacífica. Com sua sede de viver, seu apetite sexual a toda prova, a lascívia que é parte indissociável de seu temperamento, as roupas decotadas e justas que lhe realçam o busto queimado de som e as belas curvas — além das joias e bolsas Chanel que ganha dos homens com quem constantemente passa a noite —, Sofia é a antítese da angelical Naïma. Zlotowski é hábil em construir essa imagem de uma dialética apenas visual, deixando sugerido que as duas têm muito mais em comum do que conseguem perceber, e o principal, do que o público alcança. As sequências em aparecem nos convescotes oferecidos por Andrés e Philippe, personagens de Nuno Lopes e Benoît Magimel, o evidenciam, e em que pese a beleza das cenas no iate dos dois, emolduradas pelo mar Mediterrâneo brilhando ao sol, o que se destaca ainda que a fotografia bem cuidada de Georges Lechaptois, é a angústia, permanente e em igual medida, de Sofia e de Naïma, expressa de modos opostos, mas com a mesma pendência. Se a personagem de Farid é triste por não ter a vida aparentemente perfeita da prima — que vai percebendo ser uma farsa erigida meticulosamente, mas de fácil desconstrução, em especial depois de um acontecimento infeliz num dos encontros no iate —, Sofia, por seu turno, se sabe levando uma vida miserável, condenando-se a ser apenas uma mulher encantadora em sua mistura de Brigitte Bardot e, referência elementar, Sophia Loren.

O roteiro de Zlotowski, coescrito com Teddy Lussi-Modeste, aproveita bem a força da estética das duas protagonistas, mormente da argelina Dehar, no centro de um escândalo sexual com a seleção francesa quando ainda menor de idade. É precisamente o sexo e o poder que ele evoca o vigoroso fio condutor da história. O fascínio que Sofia exerce sobre todos os personagens, descartável, mas poderoso, trava uma guerra quase sangrenta com tudo o que Naïma representa, identidade que assume de vez no desfecho. Cada um tem autonomia para decidir que rumo tomar, e é essa a grande sacada de “A Prima Sofia”, sem moralismo nem tragédias.


Filme: A Prima Sofia
Direção: Rebecca Zlotowski
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Comédia/Coming-of-age
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.