Subestimado, filme da Netflix funciona apenas para pessoas inteligentes Keith Bernstein / Netflix

Subestimado, filme da Netflix funciona apenas para pessoas inteligentes

Abordar temas que aludem à forma como as pessoas veem o mundo exige delicadeza, mas é uma das funções mais óbvias das manifestações artísticas. Ainda que todos mereçamos respeito, independentemente de que credo professemos ou das convicções políticas que nos são mais próximas, existem determinados aspectos de escolhas pessoais que devem ser analisados com mais rigor, a fim de tentar dar cabo de alguns enganos e não permitir que floresça o arbítrio. Adultos que se submetem a uma seita estão conscientes — ou, ao menos, deveriam estar — dos deveres e regras que precisam cumprir, todavia as crianças nessas comunidades teriam de ser objeto de atenção incansável do poder público, uma vez que não reúnem a maturidade e o discernimento acerca do que pode haver por trás da autodeclarada vontade de fazer do mundo um lugar um pouco menos selvagem, mais afável e mais condigno do que se tem por ideal de lar, onde filhos podem ser gerados e educados sem as justas preocupações com o pavor da violência, da droga, da degeneração moral. O isolamento, lamentavelmente, também redunda em riscos, de outra natureza, mas igualmente danosos.

O garoto amish que se torna o protagonista de “Mudo” (2018) perde sua voz por causa de escolhas equivocadas dos pais na esteira de um acidente grave enquanto nadava num lago em companhia dos pais e dos irmãos. Tomando essa tragédia por ponto de partida, o diretor Duncan Jones fala sobre um futuro pouco alvissareiro, em que esse menino é obrigado a se transformar num homem, sem nunca conseguir se reconhecer um indivíduo como os outros. Trinta anos depois, Leo Beiler, aquele menino, esse homem, vive em Berlim, uma das megalópoles mais seculares da Europa, ganhando a vida como barman numa boate. Os dias de membro compulsório na comunidade amish onde crescera ficaram no passado, mas o trauma e seu efeito direto e irremediável, a incapacidade de emitir qualquer som com as cordas vocais, permanecem, à guisa de lembrete de como a vida pode ser injusta.

O roteiro, de Jones e Michael Robert Johnson, se vale dessa alegoria visualmente poderosa a fim de avivar a fantasia que anuncia o porvir como um tempo de esperança e transformações, liquefeita rapidamente na sequência em que Leo, que ganha vida na atuação vigorosa de Alexander Skarsgård, é obrigado a enfrentar clientes que investem contra Naadirah, de Seyneb Saleh, a garçonete com quem está namorando. Dispondo quase sempre apenas do olhar para permitir que a revolta de seu personagem flua, Skarsgård tira essa limitação dramática de letra, e consegue imprimir a densidade que um tipo como Leo exige descobrindo o meio-termo entre a potencial inclinação para a mágoa — e daí para o crime — e a doçura, que resiste a seu próprio contrapelo, resultando na natureza de fera ferida que é sua constituição essencial. O convívio forçado, como quando dos tempos de amish, com marginais como Cactus Bill de um Paul Rudd particularmente asqueroso, e Duck, de Justin Theroux, tem o condão de fazê-lo repensar seu sentimento por Naadirah, cujas atitudes cada vez mais envoltas em segredo intrigam-no. O sumiço da garçonete, perturbadoramente inexplicável, motiva a primeira reviravolta de “Mudo”, momento em que o herói de Skarsgård, afinal se reveste da coragem que dormitava em seu espírito para procurá-la e vingar-se de seus seviciadores. 

O caráter justiceiro que passa a guiar a conduta do protagonista, vagando pelos inferninhos de uma cidade grande e inóspita em busca da amada perdida para traficantes e proxenetas, representação por excelência do cinema noir — e o pôster de “O Anjo Azul” (1930), clássico do gênero sob a batuta de Josef von Sternberg não é à toa —, deixa clara a intenção romântica de Jones, o que cai muito bem numa história que se propõe a dissertar sobre a  maldade do mundo a qualquer tempo sob a perspectiva de um homem bom que se vê impelido a também se conspurcar em nome de uma causa nobre. O que o espectador decerto lhe perdoa por, como ele, também já ter se apaixonado. E é isso que nos iguala a todos.


Filme: Mudo  
Direção: Duncan Jones
Ano: 2018
Gêneros: Ficção científica/Thriller
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.