Bonito, inteligente e excêntrico, o filme perfeito da Netflix para um domingo em família Divulgação / Netflix

Bonito, inteligente e excêntrico, o filme perfeito da Netflix para um domingo em família

Falar de adolescência sem fazer menção à rebeldia que define essa fase da vida é, no mínimo, estranho. Esse estranhamento de todas as coisas, esse desconforto frente ao mundo e a si mesmo, a vontade de transformar tudo quanto já existe, sem muita ideia de por onde começar e, o principal, de que jeito, costuma não acabar bem. A personalidade ainda por se consolidar, aliada ao ímpeto a toda prova, força física em pleno vigor e a propensão natural da idade quanto a submeter a si e aos que estão ao redor a testes de bravura não raro degringolam em isolamento social, afrontação às leis, crime e, por fim, a tragédia do confinamento compulsório em instituições mantidas pelo Estado, que nem sempre contam com o básico para atendê-los e, dessa forma, colocar em prática o princípio elementar para o qual são construídas e mantidas com o dinheiro do pagador de impostos, ou seja, reeducar esses indivíduos e permitir que tornem ao convívio junto aos demais cidadãos. Recuperar vidas que se fragmentam antes mesmo que possam se notabilizar por suas habilidades e realizações é um processo moroso, que vai muito além do cinismo do poder público de destinar recursos a essas entidades de tempos em tempos. Para que a empreitada logre sucesso mesmo, é preciso envolvimento, compromisso. E boa dose de paixão. 

Aos dezessete anos, Héctor é um exemplo do gênero de pessoas que compõem essas ditas unidades de ressocialização, inúmeras delas apenas depósitos de gente, e gente que poderia estar num momento de franca ascensão, estudando, trabalhando, pensando soluções para seus problemas e os dos outros. Malgrado “Dezessete” (2019) se passe na Espanha, também no filme de Daniel Sánchez Arévalo se nota essa desarmonia entre a intenção e a vida como ela é. Já tendo experimentado o desprezo da sociedade e da própria família, o personagem de Biel Montoro é obrigado a desenvolver mecanismos que lhe possibilitem sobreviver àquele sistema tão particular, que também o oprime. Patologicamente solitário, Héctor é sujeitado a provocações dos outros internos — que o perseguem justamente porque ele leva a sério a punição da juíza que o condenara por furto qualificado a uma loja de departamentos, para onde se deslocara numa moto, também roubada, não obstante fosse movido pela vontade nobre de melhorar as condições da avó, Cuca, de Lola Cordon, que padece de uma doença terminal — e os monitores nunca se apercebem disso. O protagonista devora o código penal espanhol, “para aprender a diferença entre certo e errado”, conforme lhe sugerira a magistrada, e o apelido de Advogado pega, como também poderia grudar o epíteto de Fujão, uma vez que, à primeira oportunidade, como um artilheiro em fim de campeonato, ele avança pelo campo em que os outros adolescentes jogam futebol, finta os guardas e se atira sobre o alambrado. Sempre apanhado, o personagem de Montoro cumpria o expediente de praxe, era encaminhado ao quarto e esperava a punição devida, mas numa dessas, ele finalmente conquista sua tão ansiada liberdade, mesmo que por meios tortos, e se reencontra com o irmão mais velho, Ismael, vivido por Nacho Sánchez. Estarem os dois cara a cara de novo desencadeia as transformações nas vidas de cada um, premissa lateral que toma a história numa boa guinada do roteiro de Arévalo, que sabe muito bem como aproveitar a deixa a fim de mostrar seus personagens numa saga de autoconhecimento e perdão de parte a parte — e que ainda serve para que Héctor tente recuperar Ovelha, o vira-lata a quem se afeiçoara durante uma atividade educativa no reformatório, seu verdadeiro (e único amigo).

Como não poderia ser de outro modo, a partir desse segundo ato “Dezessete” se alonga sobre as dificuldades do relacionamento entre os irmãos, ampliando o corte para questões ainda incômodas, como onde enterrar Cuca depois que ela, afinal, sucumbir, porque o aluguel do jazigo da família está vencido há mais de um ano. A promessa de felicidade do desfecho é pouco mais que ilusória, com Héctor e Nacho seguindo cada qual seu caminho novamente, e sem Ovelha. Mas a vida é, em suma, isso mesmo: o desencontro em meio a instantes de congraçamento.


Filme: Dezessete
Direção: Daniel Sánchez Arévalo
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Comédia/Coming-of-age
Nota: 9/10