Uma obra de arte, filme com Johnny Depp e Christian Bale, na Netflix, vai tirar seu fôlego por 143 minutos Divulgação / Universal Pictures

Uma obra de arte, filme com Johnny Depp e Christian Bale, na Netflix, vai tirar seu fôlego por 143 minutos

Para tentar se entender a mente de um criminoso, é comum e mesmo recomendável procurar algum traço de humanidade em suas ações. Há diversas linhas de estudos quanto a conjecturar o jeito mais eficaz de se chegar ao íntimo de pessoas que muitas vezes já perderam os possíveis elos cívicos com o mundo exterior, restando no fundo só uma personalidade doentia, sedenta de reparações que só elas admitem como justas. A mínima tentação quanto a se conferir algum verniz de glamour ao crime deve ser prontamente rechaçada. Contudo, é inegável que o sentimento amoroso traz o facínora para mais perto do homem íntegro, e muitas vezes até o regenera. Este não foi o caso de John Herbert Dillinger Junior, um dos ladrões de banco mais procurados dos Estados Unidos na primeira metade dos anos 1930. Entretanto, se podemos falar em legado quando se trata de um criminoso, Dillinger, morto aos 31 anos, em 1934, pode se considerar satisfeito, onde quer que esteja, por ter arrebanhado a simpatia de milhões de espectadores em “Inimigos Públicos” (2009), celebrado pelo diretor Michael Mann como um bandido cujo coração de trevas achava espaço para um improvável romantismo.

Dillinger passou toda a curta vida num esforço insano de tirar a carga de anátema da maneira como ganhava a vida. O vilão-protagonista do longa de Mann, bem absorvido por Johnny Depp, revelava para quem quisesse ouvir a natureza de seu ofício. Nascido num lar desestruturado, Dillinger começou cedo a experimentar episódios de negligência parental regados a surras homéricas, dadas pelo pai, John Wilson Dillinger, uma vez que a mãe, Mary Ellen Lancaster, a Molly, morrera quando ele tinha apenas três anos. Tão logo se percebeu crescido o suficiente e autoconfiante na medida para tomar conta de si mesmo, Dillinger passou a cometer pequenos delitos, até ser oficialmente preso, em 1924, por roubar cinquenta dólares do caixa de um supermercado. Foi parar na Penitenciária Estadual de Indiana, centro-oeste dos Estados Unidos, onde conheceu Harry Pierpont e Russel Clark, o Boobie, os grandes assaltantes de bancos da época. Condenado a dez anos, Dillinger escapa da cadeia com Pierpont e Clark, e a partir desse ponto, como o roteiro de Mann, Ronan Bennett e Anna Biderman explicita, começa a erigir a figura mítica em torno da qual toda a sua vida passa a girar.

O diretor passa ao largo da vida “antes da fama” de seu protagonista, preferindo se concentrar mesmo no que Dillinger se torna no submundo da América. O fato de roubar banqueiros, mas se abster de levar o dinheiro dos correntistas, que lhe rendeu o apelido de novo Robin Hood, fica apenas subentendido, bem como seu apetite por sexo. Nesse aspecto, a entrada em cena de Marion Cotillard como Billie Frechette, a ex-funcionária da chapelaria de uma boate, suaviza a aura de um homem excessivamente preocupado com seu desempenho no crime. O encontro dos dois, almas tenebrosas de seres perdidos no caos do mundo, é das melhores passagens não só do filme como do cinema contemporâneo, e o sentimentalismo que se insinua aí, aparentemente contrafeito, passa a ser aproveitado em diversas sequências, abrindo-se novos campos semânticos para o entendimento do personagem. Parece que Billie, uma mulher frágil, desamparada, carente de proteção, proporciona a Dillinger o vigor que lhe começava a esmorecer, e mesmo quando vai parar no cárcere pela primeira vez depois de nacionalmente conhecido, pelas mãos do agente do FBI Melvin Purvis, de Christian Bale, acha motivo para fazer graça. Algum tempo depois, o personagem de Depp torna a escapar, reiniciando-se o ciclo; todas essas cenas de perseguição, muito bem-produzidas, colaboram para fazer de “Inimigos Públicos” um dos melhores thrillers policiais recentes. A fotografia de Dante Spinotti remete a audiência direto para o noir dos grandes filmes de quando a trama se desenrola, a primeira fase da Era de Ouro de Hollywood — a menção a “Vencido pela Lei” (1934), dirigido por W. S. Van Dyke e George Cukor, um excelente comentário metalinguístico, é espantosamente apropriada. Ao deixar a sessão, na noite de 22 de julho de 1934, Purvis mata Dillinger numa emboscada, até hoje considerada por muitos como um ato de covardia execrável. Melvin Purvis deixou o FBI no ano seguinte.


Filme: Inimigos Públicos
Direção: Michael Mann
Ano: 2009
Gêneros: Crime/Drama
Nota: 9/10