Adorável e delicioso, pouquíssimos filmes da história do cinema irão te tocar tão profundamente, na Netflix Kerry Brown / Sony Pictures Classics

Adorável e delicioso, pouquíssimos filmes da história do cinema irão te tocar tão profundamente, na Netflix

O amor está sempre à espreita, como a grande ameaça da vida. Apaixonar-se pode ser a perdição irreparável de alguém, sobretudo se o sentimento avassalador de descobrir-se tomado pela vontade de estar além da própria pele vem demasiado cedo, mas viver nunca foi um problema matemático, cujo frio resultado não encerra nenhuma outra possibilidade. Faz-se necessário experimentar, arriscar-se, flertar com o perigo muitas vezes para, talvez, se começar a entender que a vida tem seus próprios mandamentos. Transitando de um para o outro lado, escapando de determinadas armadilhas para se deixar capturar por umas tantas, ledamente, fazemos da existência a arte de saber se esquivar e de gostar de sofrer. Antes mesmo que o galo cante pela terceira vez numa madrugada chuvosa, certo de que sem essa sua doida empreitada o mundo estará condenado às trevas de uma noite sem fim, já teremos também nós nos submetido aos mil açoites do carrasco inexpugnável que nos habita, indignado por termos aberto a única porta que deveríamos manter fechada, se não para sempre, pelo maior tempo possível.

Boa parte da excelente condução de “Educação” deve-se à naturalidade de sua protagonista. Esse certamente é o cartão de visitas de Carey Mulligan, o mais bonito deles, cor-de-rosa talvez, como conviria a uma moça sonhadora de Londres do começo dos anos 1960, por mais rebelde que se pretenda. Jenny tem dezesseis anos — Mulligan tinha 24 quando da estreia do filme, em 2009, mais um ponto para sua lista —, uma legítima baby boomer em 1961, tempo em que pessoas dessa idade eram mesmo ingênuas, garotas, em especial. Muitas vezes é necessário que nos belisquemos, com força, mas a essa época os homens geniais que desenvolveram essa hidra chamada internet eram também moleques espinhentos, então como fazer para burlar o tédio imperioso que nos assola a todos desde que vemos a luz do mundo, tanto pior ao longo do tormento da adolescência? Às alternativas mais conservadoras de espinafrar pai e mãe somam-se as mais corajosas, como declarar-se discípulo de Simone de Beauvoir (1908-1986) num existencialismo um tanto capenga, e assumir um discurso esquerdofrênico, pródigo do vocabulário em voga naquele tempo (“pobres” viram desassistidos, ao passo que ricos são os “burgueses”), ainda que não se saiba muito bem onde se queira chegar. Jenny faz tudo isso e decerto essa sua inclinação ao gauche da vida a impele a se aproximar do David de Peter Sarsgaard, ainda que o encontro dos dois tenha sido romanticamente casual, como dá a entender o roteiro de Nick Hornby, adaptado a partir das memórias da jornalista Lynn Barber. Na visão da diretora Lone Scherfig, entretanto, resta uma ponta de erotismo nesse approach inicial, em que a personagem de Mulligan se encharca sob uma chuva de inundar desertos. Só ficou faltando mesmo a garota trajar um vestido branco, sem nenhuma lingerie por baixo.

David, por seu turno é um homem bonito, sofisticado, com quem Jenny certamente há de poder esgrimar o que conseguiu saber sobre as teorias de Marx e Engels, compartilhar seu amor pela música erudita, convidada a tocar seu violoncelo em saraus a horas mortas em algum lugar aprazível do subúrbio londrino, e um companheiro para as visitas a museus em que se admira o melhor da pintura de todos os tempos. O único empecilho nem chega a se fazer tão monolítico assim: David já tem quase quarenta anos, o que para a época equivaleria a, pelo menos, duas décadas a mais, mas Scherfig ameniza bastante possíveis conflitos geracionais, a ponto de fazer com que a meia-idade do novo namorado de Jenny seja não só aceita por Jack e Marjorie, os pais da moça, vividos por Alfred Molina e Cara Seymour, como um predicado que os aproximasse. David e Jack logo estão se tuteando, trocando impressões sobre mulheres, acatando a presença de um na vida do outro. Sedutor por natureza, em todos os sentidos, David acaba conquistando a afeição dos candidatos a sogros, enquanto Jenny frequenta cada vez menos a casa paterna. Essa subtrama de “Educação” teria tudo para acabar bem, como o próprio filme, mas Jenny, vítima da própria maturidade, percebe que seu príncipe desencantara. E da pior maneira.

Lone Scherfig faz de um enredo banal uma verdadeira obra-prima, ainda que cometa o pecado mortal de relegar a esplêndida Rosemund Pike a entradas sorrateiras, envergonhadas, quase clandestinas. “Educação” é um belo retrato das ilusões perdidas de uma geração e de uma pessoa em especial. E é por se fiar nessa segunda categoria, a dos indivíduos, é que continua sendo um grande filme.


Filme: Educação  
Direção: Lone Scherfig
Ano: 2009
Gêneros: Drama/Romance/Coming-of-age
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.