Considerada o ópio do povo por gente com outros vícios, a religião tem salvado uma legião de almas da danação eterna desde que o mundo é mundo, principalmente nos recantos menos iluminados. Por tão incompreendida, essa força invisível gera distorções naturais, que demandam atenção redobrada e combate imediato, a fim de se evitem os tantos equívocos que se valem da dúvida ou da incerteza para prosperar, personificados pelos falsos profetas que campeiam em toda parte e levam corações incautos para longe da beatitude, da beleza e da graça.
Gareth Evans faz de seu filme um caldeirão em que fervem em fogo baixo o mistério, o amor, a necessidade de um grupo de pessoas quanto a se encontrar no mundo, bem como a estranheza de outra porção, menor, de se livrar de fantasmas atávicos, alimentados com o que pode haver de mais nobre na alma de alguém. “Apóstolo” (2018) conta com a cumplicidade do espectador para desvendar os segredos que devem vir à luz, ao passo que faz com que outros continuem onde precisam estar, à sombra, preservados do eixo principal da história. Pelo menos até o momento em que sua incorporação torna-se fundamental.
Em 1905, Thomas Richardson, o ex-padre vivido por Dan Stevens, volta para casa e é surpreendido pela notícia do sequestro da irmã. Jennifer, de Elen Rhys, é mantida prisioneira numa ilha em algum lugar do Atlântico Norte, em que uma manifestação muito particular de culto religioso ainda é professada, mas ameaça ir a pique. O lugarejo, domínio do autoproclamado profeta Malcolm, interpretado por Michael Sheen, começa a sofrer com as colheitas cada vez mais mirradas e sem perspectiva de melhora, o que julgam consequência de uma praga lançada contra aquele pedaço de paraíso. A presença de Jennifer pode garantir, segundo Malcolm, que as preces dos aldeães sejam ouvidas, e Evans emprega esse argumento na defesa do ponto de vista da religião — ou da religião malversada em fanatismo — como fonte de descaminho do espírito humano. Thomas parte para a ilha, tentando não chamar a atenção, a fim de incorporar-se à sociedade local e descobrir o paradeiro da irmã, e a primeira coisa que lhe salta aos olhos é a dubiedade dos ilhéus, nem tão simplórios nem tão devotos quanto ele pensava.
O roteiro de Evans enfatiza o terror da narrativa, principalmente, por óbvio, depois que o personagem de Stevens desembarca na ilha, mas “Apóstolo”, como o próprio nome sugere, é um filme que se debruça sobre as formas pouco nobres que a religião é forçada a assumir por figuras que se utilizam de sua importância na vida do indivíduo e da coletividade a fim de conquistar alguma projeção. A fotografia, sempre muitos tons abaixo do confortável, é uma prova de que o diretor se compromete com seu trabalho, anseia por fazer um produto de estética minimamente adequada à atmosfera de obscurantismo e velhacaria que impregna a ilha, tomada de gente apenas ignorante à primeira vista, mas também cruel e perigosa à medida que a história avança. Ele precisa que o público compre essa malignidade do ambiente que escolhe para ancorar seu enredo, sem que, no entanto, essa apreensão degringole em ojeriza. Evans subverte o gosto de quem assiste e, todavia, ninguém se dá conta do engano que se lhe projeta diante dos olhos.
Filmes de terror parecem ter se tornado uma praga na indústria cinematográfica mundial, já alvejada por pragas outras desde seu início há cerca de um século. Contudo, diretores como Gareth Evans, com filmes como este se fazem mais e mais necessários. Evans não faz questão de facilitar nada, bem como seu filme não se esmera por apresentar facilidades pouco verossímeis. O desfecho, ao cabo de algumas reviravoltas — umas mais significativas, outras nem tanto —, até parece incoerente, tanto mais se se considerar que finais conflituosos nunca são adequados. Porém, “Apóstolo” não tem receio de ser perturbador, ou mesmo estranho, ou mesmo incômodo ou inconveniente ao melindrar certezas e ferir suscetibilidades. Pelo sim, pelo não, o diretor ainda deu um jeito de incluir num argumento tão cerebral cenas de massa encefálica enxovalhando o ambiente. Ninguém pode reclamar de que ele não tenha tentado agradar a todos.
Filme: Apóstolo
Direção: Gareth Evans
Ano: 2018
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 9/10