“Vivemos um momento em que todos os demônios se liberaram” — Luís Alberto Barroso, numa conferência em Boston, 10/4. Visivelmente estuporado.
Liberou o chefe, liberou geral, à esquerda e à direita, e principalmente no Centrão. Tem para todo gosto: de farda, toga, jaleco, batina e cinta-liga, de poncho e quimono, tanto faz se vestem bermudão ou Armani; eles se liberaram, é uma orgia incontrolável: demônio de cocar e nu com a mão no bolso, dentro e fora do templo e do armário, de jet-ski, a pé ou à cavalo, eles brilham em púlpitos, palanques e nas arenas reais e virtuais, brilham à meia noite no cemitério e debaixo do sol do meio dia no sambódromo, enfeitiçam e arrastam multidões, mas o que curtem mesmo é um particular, um off.
Se tem uma coisa que dá tesão no diabo é um covil, um “vem cá meu nego, vamos conversar”, a especialidade do ‘mardito’ é driblar a verdade e moldá-la ao feitio das conveniências do freguês, lançar um outro olhar, desconstruir, revisitar e, depois, fazer um bem-bolado de modo que a mentira apacifique e justifique as mais torpes intenções, assim que nasceram a ética, a moral e a justiça dos homens. Mas eu dizia que um remanejamento, uma intimidade e um “off” é com ele mesmo, portanto o que não falta é demanda, mais procura do que oferta, muito mais! As caldeiras de Satanás não param, o trabalho é diuturno e voluntário, fornadas e mais fornadas de demônios se retroalimentam e “se liberam” gerando miríades, legiões e mais legiões de demônios! Demônios, ministro, demônios à mancheia.
Fazem qualquer negócio, até perdoam! Qual o espanto?
Segundo os profetas do evangelho, desvirtuamos nossa procedência e adulteramos a criação, renegamos a vida e, com isso, perdemos a unidade e o discernimento, ou seja, da condição de criaturas passamos a criadores: apadrinhados pela serpente usamos nossa lábia para dar uma volta em nossos próprios corações, conhecemos a fraude e prazerosamente nos deixamos seduzir pelo engano, pelos atalhos, pela conversa mole. E assim nos lançamos do pináculo com o tesão de quem libera uma legião demônios e, depois, nos espantamos com a presença deles; assim também que as filigranas são usadas contra os inimigos e a favor de nossos interesses, assim que se forjam e se adulteram provas e que, estuporados, chancelamos o produto da fraude como se, antes, os propósitos mais torpes não tivessem sido cultivados em nossos serpentários mais íntimos; raça de hipócritas, de víboras, de poetas advogados.
Depois, ah, depois é só botar o bloco dos inocentes na rua e chamar de justiça, cumpra-se a lei, dane-se a lei.
Ah, é tudo tão explícito, da costela de um saiu o outro, e outras dezenas estão na fila para ocupar a casa tão logo a vaga esteja disponível. Tá tudo na Bíblia.
Parece até que virei o Beato Salu. Não é isso. Tô tentando dizer que é impressionante como o chiqueiro se repete, sempre a mesma história. Até o apocalipse que, em tese, serviria para encerrar o assunto, até o apocalipse nasce e renasce todo dia, em resplandecentes, mortíferos e solares espirais. Se você tem menos de 40 anos, é melhor ir ao YouTube e pesquisar “Beato Salu”. Aproveite e ouça “Howlin’Wolf: Moanin’in the Moonlight”.
Tudo tão explícito, do conhecimento geral dos homens e das nações, recorrente e nojento. A podridão é bíblica, e a carência dos homens é o inferno. Tá tudo lá desde sempre, só que em Babilônia não tinha iPhone nem self/ acrigel e silicone, e as coisas eram tratadas a ferro e fogo, e os amaldiçoados eram menos infantis e chiliquentos; vai lá, confira: tem censura, peste e carnaval fora de época e muito sangue de inocente derramado, templos, sinédrios, sacerdotes e sumos sacerdotes, tem Anitta e Jezebel, Sleeping Giants e Golias, Bolsonaro e Judas, Nabucodonosor e Putin, Lula e Barrabás, demônios à mancheia, ministro!
As mesmas figuras dançando ao redor das mesmas cadeiras, o eterno retorno incorporando os mesmos personagens e — óbvio — repetindo as mesmas atrocidades, um milagre aqui e outro acolá porque ninguém é de ferro, mas sobretudo temos legiões de demônios sambando sobre o evangelho, e serpente tirando onda de crente desde a criação do mundo; reparem no beiçola do demônio-mor, o beiçola de bookmaker que sopra no ouvido do imaculado e da primeira mulher amaldiçoada até os dias de hoje, é a serpente que diz “pula, pula, o mundo é seu”, é a mesma criatura do Gênesis que empestou o paraíso; reparem no arroto pestilento que emana de suas entranhas, nos habeas corpus suspeitos e nas jurisprudências que foram estabelecidas nas quintas do inferno (e que mudam, claro, ao sabor das oportunidades), reparem nas quintas e nos domínios do beiçola, não aquele da “Grande Família”, mas do Capo, do urubu-rei, ladeado pelos outros urubus de Abadiânia, Sarandi, Sodoma e Gomorra, todos possuídos desde os tártaros mais abissais até a mais profunda insignificância de suas alminhas em decomposição, quem têm olhos de olhar que veja: a serpente devora a própria cabeça, e o diabo-homem está sentado no trono da serpente.
Somos escravos nas quintas do inferno.
Isto é, reféns de nossa frágil e deturpada condição humana, reféns do barro, da lama, do aluvião, da morte. A não ser que renunciemos à serpente, à mentira, à hipocrisia, a não ser que renunciemos ao mundo. Mas acho que ninguém aqui tem vocação para virar Beato Salu, eu tampouco. Temos a possibilidade de entregar nas mãos de Deus, é uma opção, afinal, diante da mentira, da omissão e da covardia, podemos entregar nas mãos de Deus, e esperar pelo pior.
Todavia, acredito numa terceira alternativa, talvez a única renúncia possível e suprema diante do armagedom que se aproxima. É o seguinte: nem precisamos surtar feito o beato Salu, basta deixar Deus fora dessa imundice, salvar o que restou de nossas consciências estuporadas e entorpecidas, e votar nulo.