A depender de onde se queira chegar — e de que jeito —, uma origem humilde pode ser um grande obstáculo. Essa é a primeira ideia defendida por “Um Homem de Sorte” (2018), cujos personagens vão entrando numa espiral que mistura aspirações por fortuna e prestígio, de um lado, contra um verdadeiro sistema, organicamente constituído, poderoso e que não tem a menor intenção de ceder espaço a quem quer que seja, do outro. Por que então esses mundos paralelos ousaram se cruzar, afinal? Essa é a pergunta que o filme de Bille August tenta responder.
O roteiro, adaptado do romance “Lykke-Per”, escrito pelo dinamarquês Henrik Pontoppidan (1857-1943), prêmio Nobel de Literatura de 1917, e publicado em oito volumes entre 1898 e 1904, puxa a corda do melodrama de tal maneira que, em diversos momentos, se tem a nítida impressão de que ela não vai suportar. Contudo, August, cujo “Pelle, o Conquistador” (1987) foi agraciado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1989, sabe muito bem a hora de sair de cena e deixar que seus personagens falem por si sós. O aspecto eminentemente choroso da história é o que prevalece; entretanto, o pulo de gato no trabalho de August é o modo sorrateiro como escolhe dizer o que nunca é explicitado, mas todos sabemos exatamente do que se trata.
O desprezo de Peter Andreas por seu pai, o rígido vigário interpretado por Anders Hove, o leva para Copenhague, bem longe da península da Jutlândia, onde nascera e fora criado, a fim de estudar engenharia. Peter é tomado de tamanha repulsa por seu passado e sua vida até então que começa a rejeitar o próprio nome e passa a ser conhecido por Per, o Per sortudo, no dinamarquês original do livro de Pontoppidan. Essa natureza indomavelmente sonhadora do protagonista é captada à perfeição por Esben Smed, que se vale do roteiro coescrito pelo diretor e Anders Frithiof August como uma ótima base para alcançar as profundezas de seu personagem, mas encontra sozinho a chave para fazer de Per um tipo verossímil. A ambição que o constitui sai das trevas à medida que se desdobra o pano de fundo da trama, um mecanismo inventado por jovem estudante capaz de aproveitar a força do vento e da água para se gerar energia elétrica, uma extravagância ainda restrita à aristocracia em princípios do século 20, mas cada vez mais imprescindível numa sociedade que se industrializava a galope.
Impressiona o aspecto inovador, até profético, de Pontoppidan, ele mesmo um engenheiro de formação convertido ao expediente jornalístico, de esquadrinhar essas possibilidades, flertando a um só tempo com a defesa do meio ambiente, a estabilização do capitalismo de mercado e o desenvolvimento científico. Já na narrativa do escritor se nota sua preocupação em enfatizar que a nação que detiver mais meios de produzir energia — e energia limpa, embora a nomenclatura ainda não estivesse disponível —, deterá também o poder econômico. Para que tenha alguma chance de ver sua ideia prosperar, esse Per ainda meio azarado, completamente excluído das altas rodas da burguesia na cidade em que escolheu morar, tem de contar com uma boa rede de contatos, no jargão contemporâneo, e, por óbvio, patrocínio. É nesse momento que August encaminha o longa (e a palavra cabe perfeitamente, diante dos quase 170 minutos de projeção) para o romance de tintas algo nebulosas entre o personagem de Smed e Jakobe Salomon, performance igualmente primorosa de Katrine Greis-Rosenthal. Jakobe é a filha do meio de uma família influente, que, ao contrário do que tudo levaria a crer, aceita a corte de Per. No entanto, bombardeada pelos comentários e, principalmente, pelo assédio moral do pai, que como as velhas raposas, tão espertas quanto carniceiras, fareja a personalidade oportunista do rapaz e a impele ao rompimento. Não se pode escapar à evidência de que, em Jakobe sendo judia e possível herdeira de uma fortuna milionária e Per um homem cristão, ainda que apóstata, e o mais relevante, pobre e nada propenso a se tornar um bajulador, a relação dos dois estaria condenada desde antes de se consumar.
O filme de Bille August decerto é um dos mais sofisticados do cinema do século 21, mesmo em se refinando o corte a somente os produzidos pela crescente indústria cinematográfica da Dinamarca, plena de genuínas obras de artes. O diretor combina a elaboração intelectual de um enredo cuja essência é misturar argumentos diversos, antagônicos muitas vezes — veja-se o que Jakobe faz com a parte que lhe cabe do patrimônio dos Salomon — à excelência da técnica, preconizada sobretudo pela fotografia de Alar Kivilo. A sequência da despedida de Per e aquela que poderia ter sido a mulher de sua vida, é sutil, mas impactante, e prova que, malgrado se repitam em dadas circunstâncias, cada filme seu encanto diferente. “Um Homem de Sorte” não foge à regra.
Filme: Um Homem de Sorte
Direção: Bille August
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10