Recurso dos mais mal distribuídos do mundo, talento, definitivamente, não é para quem quer. Todos conhecemos alguém que persegue uma carreira há décadas, se dedica, passa a trabalhar em dois, três empregos com a intenção de pagar cursos para melhor se qualificar e ao fim de uma jornada longa e penosa, só o que se tem é a consternação. Como explicar o fato de um indivíduo cuja história de vida apontava não só para o fracasso como, muito pior, para a implosão social, patrocinada por um gênio irascível, desagregação familiar e a sempiterna falta de dinheiro palmilhar uma trajetória mais que exitosa, brilhante, paradigma a ser copiado por toda a humanidade? Dentre aqueles que escolhe, Deus teria seus favoritos?
Típico projeto de que a televisão se apropria e com que bate recordes de audiência, “Mãos Talentosas: A História de Ben Carson”, originalmente exibido pela TNT em 2009, reacende a necessidade de se falar de superação a partir, claro, de aptidões particulares, mas também de empenho, resiliência, amor próprio, subjugação de instintos autodestrutivos e a pretensa superioridade racialista sempre que mencionado. A direção de Thomas Carter aliada à performance de seu ator principal coroam um conjunto de intenções que até podem soar megalomaníacas ou esnobes num primeiro momento, mas logo passam a ser encaradas sob uma perspectiva mais indulgente e mesmo estimulante, ao menos pela parcela bem intencionada do público.
Cuba Gooding Jr. quase repete a excelente performance vista em “Jerry Maguire” (1996), de Cameron Crowe, pela qual ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Na pele de Benjamin Carson, um dos mais célebres neurocirurgiões da história, Gooding dá a dose de humanismo que faltava a uma trama que se destaca pela exatidão dos dados, sobretudo os que se referem a doenças e procedimentos cirúrgicos, tanto que o roteiro de John Pielmeier muitas vezes mais parece a descrição de um simpósio médico, talvez por se preocupar demais em replicar com fidedignidade demasiada o conteúdo da autobiografia do chefe do setor de neurocirurgia pediátrica do Johns Hopkins Children’s Center, best seller publicado pela em 1990. Levou quase vinte anos até que a história, com alguns pontos em aberto, fosse transposta para a tela, mas o trabalho de Gooding compensa a espera dos admiradores do doutor Carson. Embora peque pelo rigor científico que tende ao farsesco de tão minuciosa, a condução de Carter se redime nas passagens em que a figura humana do protagonista é colocada a nu. Muito antes da sequência central, que ancora o longa, a atuação profissional do neurocirurgião que se tornou o melhor em operar crianças é esboçada, na cena no introito do filme, quando um toca-fitas reproduz uma peça de Vivaldi, deslindando aspectos fulcrais do jeito de ser do personagem.
Cerca de oito minutos depois, “Mãos Talentosas” mergulha na abordagem da infância de Carson, um menino visivelmente limitado. Se por lado, o Bennie adolescente, vivido com ímpeto por Jaishon Fisher, está cercado pela mãe depressiva, pelo outro não tem com quem contar: o pai saiu de casa para se afundar de vez nas drogas. Apesar de tomadas por seus próprios demônios interiores, Sonya Carson é o porto seguro de afeto e repreensão de que o filho caçula necessita a fim de dar a sua vida um destino diferente do caminho trilhado pelos pais, que ficaram na escola apenas o tempo necessário para aprender a ler, escrever e decorar a tabuada. Kimberly Elise leva sua personagem para esses dois extremos, o da mãe amorosa e devotada que supera dificuldades que embotariam a vida de alguém mais suscetível levando o bem-estar dos filhos em primeiro lugar e o da mulher que soçobra diante de medos desconhecidos. Nem quando decide abdicar do convívio dos filhos para tratar a sério a depressão crônica, Sonya esquece de Bennie e Curtis, o filho mais velho, de Tajh Bellow: por meio de cartas ela deixa os dois, principalmente o personagem de Fisher, a par do tratamento e de sua evolução, até que vence a batalha. Mas o final feliz para Bennie ainda há de tardar. Envolvendo-se em confusões por conta das amizades que consegue fazer — inclusive uma que poderia ter lhe rendido alguns anos no reformatório —, o garoto escapa graças à pertinácia da mãe e da tolerância da escola. A suposta oferta de uma bolsa integral na academia militar de West Point, que Carson teria recusado, foi, muitos anos depois, assumida como uma mentira que dissera. A história voltou a ser explorada quando de sua pré-candidatura à Presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano em 2020, e providencialmente ficou de fora do filme, acentuando o caráter hagiográfico do trabalho de Thomas Carter.
A técnica revolucionária (e arriscada), que permitiu separar gêmeos xifópagos unidos pelo crânio, tornou Ben Carson uma celebridade mundial. “Mãos Talentosas: A História de Ben Carson” comete seus muitos pecadilhos, desculpáveis em se comparando aos do próprio biografado, que se mostra maior que eles também por todo o bom resultado que apresentou ao longo da carreira. Mesmo assim, um pouco mais de prudência e humildade não teria feito mal a ninguém.
Filme: Mãos Talentosas: A História de Ben Carson
Direção: Thomas Carter
Ano: 2009
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 8/10