Anatomia de um Escândalo: nova série da Netflix tem roteiro escorregadio, mas é salva por duas boas atuações Foto: Divulgação / Netflix

Anatomia de um Escândalo: nova série da Netflix tem roteiro escorregadio, mas é salva por duas boas atuações

Escândalos sexuais são uma estratégia conhecida para se capturar a atenção do público, e tanto mais se o caso envolve um homem poderoso, uma mulher subjugada, mas calculista e a esposa do suposto agressor, levada a reboque em meio a uma avalanche de notícias, verdadeiras ou nem tanto, todas capazes de arruinar a vida de uma família para sempre. Como se pode notar, “Anatomia de um Escândalo” não apresenta nada de novo, e ainda assim é capaz de render polêmica, menos por causa da série criada por David E. Kelley e Melissa James Gibson que pelo assunto em si.

Incorporada ao catálogo da Netflix em 15 de abril de 2022, a produção, dividida em seis episódios de 45 minutos em média, todos dirigidos por S.J. Clarkson, parte da novela homônima da escritora e jornalista britânica Sarah Vaughan, publicada no Brasil em 2018 pela Topseller, a história repisa o argumento já visto em obras como “O Escândalo” (2019), levado à tela por Jay Roach, substituindo-se a redação do departamento jornalístico de uma grande emissora de televisão pelo Parlamento do Reino Unido e um magnata da comunicação pela figura aparentemente sóbria de um político bem-sucedido. Graduado em Oxford, James Whitehouse, tem uma vida invejável. Whitehouse, personagem de um Rupert Friend nada inspirado, conduz a carreira como um dos assessores diretos do primeiro-ministro com mão de ferro, se blindando ao máximo de situações que possam empanar o brilho de sua trajetória. Sua esposa, Sophie, cumpre sua cota de sacrifício e proporciona ao marido o outro lado perfeito, a vida pessoal impecável, reta, sem nada que desperte suspeitas de quem quer que seja. Loira, esguia, naturalmente sofisticada, também formada em Oxford, onde conheceu Whitehouse e pouco esnobe, a dona de casa vivida por Sienna Miller — a segunda melhor coisa na trama — se esmera nos cuidados aos dois filhos do casal. Nos muitos intervalos ao longo de dias e dias repletos de ócio, Sophie, que sempre se dedicou exclusivamente à família, pensa em iniciar a vida profissional, talvez como professora numa escola de educação de infantil, iniciativa que o marido rejeita. O único a ter o direito natural a se firmar profissionalmente é ele, por óbvio, e esse é o seu dever: sustentá-la e a seus filhos, demonstrando ser o provedor da relação, papel de todo homem que se preze. Até que um segredo deixa as sombras e ocupa o centro da vida da família e as páginas dos jornais.

A acusação de estupro da parte de Olivia Lytton cai como uma bomba em Downing Street, e a reputação que Whitehouse vem construindo a duras penas, tijolo por tijolo, ameaça ruir de uma vez. O político de fato mantinha um caso extraconjugal com a personagem de Naomi Scott, mas o sexo entre os dois, malgrado violento, selvagem, sempre fora consensual, ele faz questão de esclarecer. Whitehouse tenta uma manobra de apaziguamento com Lytton, valendo-se da ajuda de Chris Clarke, interpretado por Joshua McGuire, gestor de crises especializado em casos como o seu, também funcionário do chefe do governo inglês, mas um obstáculo se impõe: a história já foi parar na polícia, que tratou de vazar a história para a imprensa. A firmeza do estilo de Clarkson menciona os tabloides, sem que tenha sido preciso despender rios de libras a fim de contratar figurantes no papel de jornalistas. Bem ao gosto da imprensa marrom da Inglaterra, destaca-se o fato de que Whitehouse e Lytton chegaram a saciar seu apetite para a volúpia no elevador que conduz aos labirintos da Câmara dos Comuns, a câmara baixa do Parlamento.

Revirando velhos arquivos à procura de informações pouco edificantes sobre Whitehouse, Kate Woodcroft, a advogada respeitada e inclemente vivida por Michelle Dockery, não se empenha precisamente em defender Lytton, mas em acusar o personagem de Friend, movida pelo ressentimento do passado que explica parte do roteiro de Kelley e Gibson. Woodcroft também precisa tomar cuidado com seu teto de vidro: seu caso com o ex-orientador de Oxford, onde, a exemplo do burocrata e da mulher, também se graduou, também pode vir à tona durante o julgamento e arrasar o casamento dele, e considerando-se sua personalidade sombria, pode ser exatamente isso que deseja. Apesar de previsível, a personagem de Dockery — munida dos indefectíveis óculos de armação pesadas, clichê dos clichês em tipos como esse, cabelo curto e roupas austeras que a envelhecem muito —faz do pouco material disponível, resguardada por um trabalho de composição irreprochável que contempla a voz, quase sempre velada, gestos contidos, uma aflitiva crispação no semblante e um jeito meio predatório de administrar seus afetos, uma masterclass de interpretação. Todas as sequências de que toma parte merecem um pouco mais de boa vontade por parre do espectador, que até pode se esquecer por alguns instantes dos escorregões narrativos que vira e mexe abalam a fluidez da história.

É cedo para dizer se “Anatomia de um Escândalo” terá uma segunda temporada, mas se a tiver, será preciso refazer muita coisa do zero. À exceção de Michelle Dockery e Sienna Miller, muito pouco poderia ser reaproveitado numa sequência do trabalho de David E. Kelley, Melissa James Gibson e S.J. Clarkson, que se perde por se pretender sério demais. Escândalos têm de ser, antes de mais nada, barulhentos. E “Anatomia de um Escândalo” é pouco barulho por muito.


Filme: Anatomia de um Escândalo
Direção: S.J. Clarkson
Ano: 2022
Gêneros: Drama
Nota: 7/10