Um futuro de abraços, sol e uisquinhos

Um futuro de abraços, sol e uisquinhos

Extrair tesouros do lamaçal é moleza. Quero ver é ser feliz e fazer poesia ao mesmo tempo. Não sei se Vinicius chegou a tanto, mas passou perto. Aliás. Muito comum falar de Vinicius como se fosse um amigo, chamá-lo assim “Vinicius”: é essa intimidade que, a meu ver, aproxima a poesia da felicidade, e traz o leitor para mais perto da amizade do que da obra — como se ambas fossem a mesma coisa.

E são. Vinicius de Moraes consegue, em momentos iluminados, juntar amizade, poesia e felicidade. Essa é a assinatura que reconheço nele, e que o aproxima de mim. Como se o autor aprisionasse seu tempo em outros tempos, e se projetasse num futuro de abraços, sol e uisquinhos, e de papos-furados intermináveis à beira-mar. O tempo em Vinicius é uma declaração de suspensão e preguiça. Creio que foi assim que ele e Toquinho se encontraram — e nos encontraram — para sempre numa tarde fugidia em Itapuã. Era começo dos anos 70.

Consta que Vinicius passou a vida a se esquivar do “Canto de Ossanha”. Ainda que soubesse que era refém de Ossanha  “vai, vai, vai” e que a sua sina era quebrar a cara e sofrer de amor até a morte, ainda assim, ele conseguiu driblar o destino com charme e integridade(de poeta).

Independentemente de ele ter se pirulitado ou ter caído no canto de Ossanha, as músicas que fez com Toquinho no começo dos 70’s, na Bahia, são verdadeiros atentados contra o pessimismo de muitos gênios que bradam o mesmo baixo astral eternidade afora: a mesma nota, a danação de sempre — desde Anaximandro, passando por Schopenhauer e Nietzsche até chegar em Oppenheimer, que é uma espécie de síntese da urubuzada e “pai” da bomba atômica.

“Tarde em Itapuã” é a prova cabal de que tristeza não tem fim, e de que a felicidade tem o poder de engarrafar todo o azul do mar dentro de uma cachaça de rolha. O dia que alguém me perguntar se fui feliz na vida, eu direi que sou feliz toda vez que ouço, sinto e imagino Vinicius e Toquinho em Itapuã nos idos dos setenta, os dois preguiçosamente estendidos numa esteira de vime a conjecturar sobre o futuro com olhares embriagados e alheios à passagem do tempo, o velho e o moço, amigos de fé e irmãos camaradas a celebrar os encontros e desencontros da vida; ah, no instante que o mar não tem tamanho sou feliz na companhia deles. O mesmo sol de Itapuã que ardia sobre Vinicius e Toquinho há 50 e tantos anos, arde na minha pele aqui e agora e vai iluminar a terra que continua a rodar de pilequinho, e me aquecer para sempre. Felicidade tem fim, porém não se esgota.

Sem exagero, apenas contando com um olhar preguiçoso na direção do poente, posso tranquilamente dizer que Vinicius e Toquinho experimentaram a felicidade plena, a mesma felicidade que condenou Galileu à fogueira, a felicidade que dura o tempo de uma tarde fugidia em Itapuã ou o tempo de um céu fraturado por Van Gogh num café de Arles (quero apostar que Van Gogh era feliz naquela noite), em suma, eu não sei se um instante pode guardar uma eternidade, mas o que eu quero dizer é que a felicidade dura pouco porque — com certeza e ao contrário da tristeza — não é para qualquer um, passa mais rápido que um instante e é mais comprometedora do que qualquer bomba atômica, mal agouro ou pessimismo intransponível.