Tão poético quanto devastador, drama da Netflix é o filme mais brutal e comovente de 2022 Lasse Frank / SF Studios

Tão poético quanto devastador, drama da Netflix é o filme mais brutal e comovente de 2022

A guerra é uma fonte perene de absurdos. Só no curso de uma guerra se pode saber até onde vai a capacidade humana de matar, sobretudo inocentes, destruir, subjugar povos inteiros aos arbítrios perversos de um só homem, a quem justiça ou clemência são valores subjetivos demais. Para a guerra e seus senhores, interessa apenas a vitória.

Poder-se-ia estar falando dos recentes ataques das tropas russas, lideradas pelo carniceiro Vladímir Putin, contra o território ucraniano, mas a introdução deste artigo alude à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), passagem infeliz da história da humanidade que, como se pode constatar, parece um repasto de eventos marcados pela truculência, pela pura e simples maldade, todos a esperar sua hora de vir à superfície, revelados pela luz reflexiva do cinema. Se a história não sai da bruma da lembrança e ocupa a vida real, fomentando o pensamento e a conclusão de que certas atitudes são intoleráveis, a impressão que fica é que determinado fato, por mais abjeto que tenha sido, não se materializou e, pior, não passa de uma inconsequente divagação. O cinema está aí também para resgatá-los.

O lançamento de bombas contra a Escola Francesa em Copenhague, em 21 de março de 1945, estabelece o limite prático entre a civilização e a barbárie. Claro que para tanto se anunciaram muitos sinais de que mais cedo ou mais tarde a situação sairia do controle, algo corriqueiro em enfrentamentos armados entre blocos de países. Originalmente, o que a esquadrilha da Força Aérea Real queria era só dar mais um passo e avançar para a próxima etapa da chamada Operação Cartago, que visava a arruinar a sede da Gestapo na Dinamarca. Vinte aviões Mosquito, escoltados por trinta caças P-51 Mustang, do regimento de aeronáutica britânico, atingiram o quartel-general da polícia secreta nazista na capital da Dinamarca, mas o planejamento pouco escrupuloso da empreitada degringolou em tragédia: um dos petardos se desviou e caiu nas imediações da escola, o que levou os outros pilotos a pensar que aquele era o alvo. O resultado da trapalhada da RAF foram 104 mortos, sendo 86 crianças.

O episódio é o mote de “O Bombardeio” (2021), do diretor dinamarquês Ole Bornedal, que se debruça sobre a história com intimidade. O pano de fundo, em que Bornedal apresenta o envolvimento romântico do combatente nazista Frederik, vivido por Alex Høgh Andersen, e a noviça Teresa, interpretada por sua filha, Fanny Bornedal, se presta a uma forma didática de abordar a guerra no país. Invadida pelos alemães em 9 de abril de 1940, a Dinamarca atravessou um momento curioso, que se estendeu por três anos, ao longo dos quais dispôs de um governo híbrido, partilhado entre o governo local e a administração subordinada a Hitler. Em 29 de agosto de 1943, contudo, o Führer determinou a dissolução da parceria, mantendo a independência do exército. Adesionista de primeira hora, Frederik galga postos importantes nos destacamentos nazistas, e logo passa a acompanhar as sessões de tortura a prisioneiros dinamarqueses, seus compatriotas, o que desperta a vergonha e a indignação da família, em especial de seu pai. Andersen tem maturidade o bastante para absorver essa dicotomia de seu personagem, que se sabe um pária, mas não ousa se levantar contra o sistema que oprime e aniquila seu povo. O encontro com Teresa, durante a perseguição a um suposto detrator do regime, diz muito dos dois. Igualmente atormentada, perdida entre a vocação para a vida religiosa e os questionamentos filosóficos sobre as doutrinas da Igreja, a personagem de Bornedal, filha do diretor, concebe uma maneira para tentar fazer o rapaz se persuadir que está do lado errado da trincheira. Sempre a rondá-la, a noviça capta uma ponta de hesitação na vida que Frederik tem levado, ao passo que se descobre interessada nele, paixão que crê natimorta se seu amor pelo serviço clerical for de fato genuíno. A impossibilidade dessa relação é trabalhada por Ole Bornedal à luz da metáfora sobre a ilogicidade da guerra, que, por outro lado, expõe facetas do homem relegadas à obscuridade em tempos de paz. A amizade ingênua entre Rigmor, vivida por Ester Birch, Eva, personagem de Ella Josephine Lund Nilsson, e Henrik, uma atuação comovente de Casper Jansen, mudo depois de um violento choque emocional no começo da trama, exalta a beleza da vida, que resiste mesmo em tempos tão sombrios, protegida pelo otimismo inocente das crianças.

Nos dois anos que se seguiram, até o fim da Segunda Guerra Mundial em 2 de setembro de 1945, a Operação Cartago, sobre as nações inicialmente neutras, casos da Dinamarca e da Noruega, empilhou 6.116 cadáveres e deixou 341 pessoas gravemente feridas. O registro que Ole Bornedal faz em “O Bombardeio” sobre esses detalhes espantosamente desconhecidos da Segunda Guerra em seu país só nos levam a inferir que há ainda muito mais a se desvelar acerca do conflito. Sempre é tempo de preservar a paz, mas, se necessário, pegar em armas para restabelecê-la.


Filme: O Bombardeio
Direção: Ole Bornedal
Ano: 2021
Gênero: Guerra/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.