Três filmes brasileiros na Netflix que farão você enxergar o cinema nacional com outros olhos Divulgação / Paris Filme

Três filmes brasileiros na Netflix que farão você enxergar o cinema nacional com outros olhos

Quem quiser conhecer as ideias que imaginam o futuro do Brasil, já pode ir à Netflix para vê-las em forma de filmes. O cinema brasileiro goza injustamente de baixo prestígio, mas três obras são traduções dos horizontes políticos e estéticos em disputa no espaço público. São elas Tropa de Elite (2007), de José Padilha; Que Horas ela Volta? (2015), de Anna Muylaert; e Branco Sai, Preto Fica (2014), de Adirley Queirós. Elas criam alegorias potentes sobre o que pode vir a ser o país, de maneira positiva ou negativa.

Os dois primeiros filmes citados condensam as visões hegemônicas de hoje, simbolizando na prática a chamada polarização política. Pode-se ver neles a clássica divisão entre direita e esquerda, além da oposição de civilização e barbárie. Uma terceira vertente existe marginalmente e está em circulação no trabalho inovador de novos cineastas como Queirós. Ela aborda as ruínas do país em agonia. Porém as outras duas são esmagadoras e vitoriosas na conquista de corações e cabeças da sociedade.

Tropa de Elite (2007), José Padilha
Tropa de Elite

O primeiro caso é o do filme “Tropa de Elite”, com o já famoso personagem do capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura. A narrativa de “Tropa” é o desejo de controle total da sociedade, a gestão do medo na população, a vigilância constante das pessoas, o extermínio de vidas (dos pobres), o indivíduo que utiliza métodos excepcionais de guerra para alcançar objetivos ou mostrar uma moralidade dita superior. Nascimento se acha o “cara” e recebe aplausos entusiasmados do público.

De maneira inédita, a questão social aparece no cinema pela ótica do policial. No país arrasado, a regeneração de “Tropa de Elite” vem pela sugestão de faxina étnica contra os miseráveis, a ser tocada pelos “homens de bem”. Civilização significa, nesse caso, linchamento. De um lado, os sujeitos da lei são considerados “samurais” — a iconografia japonesa é invocada por Padilha. No outro lado, os alvos são negros, pobres e favelados, juntos com a classe média branca que lê Michel Foucault.

“Fórmula mágica da paz”

É possível até ter pena dos bandidos e traficantes capturados por Nascimento e sua equipe de elite. Não se trata de um acaso a cena do filme com o livro de Foucault, justamente um dos primeiros pensadores a identificar a questão da biopolítica. O que se vê em “Tropa de elite”, em alto padrão técnico de cinema dos EUA, é a aplicação da lógica de que certas pessoas são matáveis impunemente. Mortes são “danos colaterais”. É a “fórmula mágica da paz”, como diz o rap dos Racionais MCs e Mano Brown.

Que Horas Ela Volta?
Que Horas ela Volta?

O contraponto à máquina ideológica e de extermínio é o filme “Que Horas ela Volta?”. Anna Muylaert sintetizou a utopia brasileira da busca pela inclusão social. É a pequena brecha para os pobres saírem do limbo onde estão jogados historicamente, a defesa da mudança pela educação e, obviamente, o conflito de classes sociais que nunca termina. De início, aparece na tela a empregada doméstica Val (interpretada pela atriz Regina Casé), que recebe a visita de sua filha Jessica (Camila Márdila).

A jovem Jessica é a intrusa que sacode a vida maçante dos patrões ricos de sua mãe. Seu objetivo é entrar para a faculdade de arquitetura da Universidade de São Paulo (USP), um dos berços da classe média radical no país. No final, ocorrem a acomodação e a resolução do conflito, bem à moda do cinema de Bruno Barreto (“Dona Flor e Seus Dois Maridos”) e de Arnaldo Jabor (“Tudo Bem”). Este último, aliás, foi o eterno cronista (apologista?) dos sonhos e ressentimentos da classe média.

Os dois projetos que esses filmes trazem funcionam como alegorias. Cada um à sua maneira, Padilha e Muylaert representam as utopias brasileiras que alimentam as pessoas, os ódios, e criam a miragem do progresso do país ao longo do tempo. Conforme a época, um aparece como vencedor (os Nascimentos). Depois vem o outro (menos vezes) para tomar o lugar (as Vals). Trata-se de horizontes possíveis. Mas, na verdade, essas utopias já deram o que tinha de dar, mesmo que sustentem uma luta fratricida.

Olhar periférico

À margem desse embate, a terceira utopia está no filme “Branco Sai, Preto Fica”, que foi filmado na cidade-satélite de Ceilândia (DF). A obra é um objeto não-identificado, assim como “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho. O personagem Cravalança é um funcionário público terceirizado que viaja no tempo a partir do ano de 2073 e aterrissa na Ceilândia de 2012. A missão: reunir documentos para o processo de reparação por danos causados à população negra e pobre do Brasil.

Branco Sai, Preto Fica (2014), Adirley Queirós
Branco Sai, Preto Fica

O filme de Adirley Queirós aponta a necessidade de um ajuste de contas na sociedade brasileira. Quem sabe, será preciso criar ficcionalmente um tribunal para julgar a barbárie do Capitão Nascimento. A reparação de “Branco Sai” é para os personagens Marquim e Sartana, mutilados após uma batida policial num baile funk dos anos 1980. Um deles está tetraplégico, e outro anda com uma perna mecânica. No baile, os policiais gritavam para os brancos saírem do local e para os negros ficarem e apanharem.

A máquina do tempo usada por Cravalança é um contêiner que sacode bastante e tem uma luz estroboscópica. Esse objeto, um OVNI, vai parar num terreno baldio da Ceilândia. A cidade do filme é um cenário pós-apocalíptico, como se estivéssemos nas séries Mad Max e Exterminador do Futuro. Os personagens precisam de passaporte para ir ao centro de Brasília. A essa absurda ficção científica se misturam formas narrativas do documentário, pois certas histórias são baseadas em episódios que aconteceram.

O cinema periférico é uma utopia política e estética para a cultura brasileira que está mergulhada em formas industriais, repetitivas e estéreis. A influência da televisão, por exemplo, torna irrelevantes os filmes nacionais de comédia. Pode haver na periferia um caminho para fugir da estagnação que persiste há quarenta anos. Nada de neoliberalismo, de gestão policial da vida ou de narrativas de inclusão social. Por isso, é um assombro a produção de cinema que aparece fora dos grandes centros do Brasil.

O caso de Recife já recolhe seus frutos em premiações e reconhecimento de público. Adirley Queirós também fez “Era Uma Vez Brasília” (2017) e “Mato em Chamas” (2022), este último celebrado no Festival de Berlim. Só o espírito criativo e anárquico explica o surgimento de uma ficção com viagens no tempo e caos ambiental, numa cidade-satélite do Distrito Federal. Nessa safra cinematográfica, também se destaca o filme “Arábia” (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans, rodado em Contagem (MG).