Indicado ao Oscar 2022, filme da Netflix que, em 40 minutos, vai mudar sua forma de enxergar a vida

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O último ano do colégio não é fácil para ninguém. Além da necessidade de se acordar excepcionalmente cedo, do pouco interesse em determinada disciplina, das desavenças com a própria biologia, todos tivemos questões ainda mais graves a administrar, que parecem muito mais assustadoras que de fato são por causa da instabilidade emocional com que a adolescência generosamente nos brinda.

Matt Ogens sabe do que está falando em “Audible”. Mesmo que seja um ouvinte, isto é, alguém sem deficiência auditiva, que ouve e se comunica do modo tradicional, Ogens tem um amigo surdo, com o qual convive desde garotos, e sempre ouvira falar da Maryland School for the Deaf, referência no ensino de estudantes surdos nos Estados Unidos. De uma forma transversal, sempre estivera muito próximo a seu objeto de estudo, e a vontade de se aprofundar no tema crescia à medida que aumentava seu prestígio como profissional de cinema. Diretor do badalado “From Harlem With Love” (2014), documentário em curta-metragem vencedor do Emmy, Ogens parecia disposto a dobrar a aposta sete anos depois e em 2021 mais uma de suas narrativas em versão compacta ganhou o mundo, indo um pouco mais longe.

Ogens viu no time de futebol da escola a oportunidade de falar dos assuntos que já o inquietavam há alguns anos, ainda que sempre restassem destinados a um futuro que nunca chegava. O espírito de luta, de combate, de garotos comuns, ainda que obrigados a lidar com condições que os apartavam dos demais e, a primeira vista, os inferiorizavam, era um argumento sedutor demais para permanecer adormecido numa gaveta qualquer da memória sabe-se lá por quanto tempo. Mais do que isso, a figura de Amaree McKenstry, o capitão da equipe de futebol americano da escola, era forte por si só e escondia por trás de um garoto comum uma história digna de um filme cuja essência poderia interessar a muito mais gente que só adolescentes, surdos ou amantes de esportes. Como sói acontecer nas ocasiões em que se toma por escolha um assunto para o qual pouca gente dá importância.

Era esse arco narrativo que Ogens buscava. Sem perder de vista o propósito de desenvolver “Audible” sob a perspectiva dos adolescentes, o diretor propõe ao espectador uma experiência afetiva, uma vez que fala a uma parte de sua história que o público certamente guarda com carinho, malgrado todas as amarguras que seus verdes anos lhe possam ter suscitado. A proximidade da vida adulta, materializada pelo vestibular, o baile de formatura, as providências de que cada um passa a ter de se encarregar, se revestem da devida seriedade ao longo do enredo, momento em que o esporte continua a fazer parte da trama, mas como metáfora, como pano de fundo, uma colaboração adicional para que se compreenda as idiossincrasias dos personagens, especialmente, por óbvio, de McKenstry, cuja resiliência diante dos pontapés da vida o fizeram quase imbatível. Os altos e baixos da vida em campo se refletiram em sua jornada pessoal e vice-versa, e o protagonista fora invulgarmente talentoso quanto a desviar das soluções fáceis e erradas ou mesmo jogar tudo para o alto e declarar-se vítima das circunstâncias, da natureza, do acaso, da própria vida.

“Audible” é sobre as idas e vindas de um garoto, mas também sobre de que forma McKenstry pode representar pessoas com vulnerabilidades semelhantes às dele. Surdo devido à meningite contraída na primeira infância, aos dois ou três anos de idade, seu pai acabou não aguentando o tranco e foi embora, mágoa que o garoto não faz questão alguma de esconder. O documentário de Ogens, rodado como uma ficção — o chamado docudrama —, registra a volta do pai do protagonista, ávido por refazer o vínculo com o filho depois de uma temporada como traficante de heroína e hoje frequentador devotado de uma congregação protestante. O roteiro se esmera em salientar outros componentes da intimidade de McKenstry, como a relação com Teddy, amigo que também frequentava a escola para surdos, mas optou por mudar para uma instituição mista e não suportou a carga de humilhações e abusos, e seu convívio bem mais solar com Jalen Whitehurst, homossexual assumido e ex-namorado de Teddy, e Lera Walkup, com quem experimenta as dores e as delícias do primeiro amor. Como se não bastasse, McKenstry é o único que não ouve em sua família — fica claro o sentimento de exclusão do garoto em meio aos parentes, visivelmente alheios à sua angústia — e a delicadeza de Ogens também sugere que ele e a mãe enfrentam apuros financeiros. A vida adulta bate à sua porta sem cerimônia, definitivamente.

O grande trunfo de um filme como este é apresentar os obstáculos da vida de um personagem com uma deficiência específica como parte da vida de qualquer pessoa, tenha a limitação que tiver, física, mental ou as que tangem ao espírito, muito mais danosas. A indicação ao Oscar de Melhor Documentário em Curta-metragem coroa com justiça o trabalho de Matt Ogens, que parece mesmo ter tomado gosto por essa linguagem. O diretor tem desenvolvido outras produções do gênero, como “Leap of Dance”, sobre a célebre academia de dança da Nigéria, e mais um, ainda sigiloso, sobre o 11 de Setembro. Se seguirem o alto padrão de “Audible”, pode-se esperar que faça outras visitas ao Teatro Dolby em breve.


Filme: Audible
Direção: Matt Ogens
Ano: 2021
Gênero: Documentário/Drama
Nota: 9/10