Inteligente, arrogante, dramático e complexo, o filme quase perfeito que deveria ser assistido por todos, na Netflix Jaap Buitendijk / Paramount Pictures

Inteligente, arrogante, dramático e complexo, o filme quase perfeito que deveria ser assistido por todos, na Netflix

Por óbvio, filme nenhum é capaz de reproduzir com toda a precisão histórica o desespero que se abate sobre cidadãos comuns após a debacle das finanças, seja em que cenário for — quiçá um ou outro documentário, em que, não raro, defendem-se algumas visões de mundo claramente eivadas dessa ou daquela abordagem ideológica. A crise que chacoalhou o cenário econômico mundial em 2008, por exemplo, foi escrutinada com rigor científico invulgar por “Trabalho Interno” (2010), vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 2011. Dirigido por Charles Ferguson, o filme se estende sobre as consequências práticas da crise de 2008, valendo-se de pesquisas, análises acadêmicas e entrevistas com personalidades, jornalistas e políticos, todos com muito o que dizer sobre o episódio. Ao longo de cinco segmentos, Ferguson se esmera em apontar a promiscuidade que teria resultado na mais grave hecatombe financeira do século 21, e, claro, o que isso implica para quem tem (e, sobretudo, para quem não tem) dinheiro.

Na ficção propriamente dita, coube a Adam McKay e seu rematado (e delicioso) cinismo explicarem o que levou milhões de americanos de classe média baixa a comprar imóveis cujas prestações sabiam que não poderiam honrar, o que, evidentemente não daria em boa coisa — ou melhor, daria em tragédia para muitos, mas também em mais dinheiro (fácil) para poucos, como sempre, aliás. Levado à tela sete anos depois da catástrofe, em 2015, depreende-se de “A Grande Aposta” uma ligeira condescendência com os lobos e abutres de Wall Street, retratados como uma súcia de malandros sem o devido preparo, somente ávidos por se dar bem e, sobretudo, atentos ao que o mercado clamava e exigia deles. A exceção é Jared Vennett, o janota de ternos bem cortados vivido por Ryan Gosling. Viciado em dinheiro — ele chega ao ponto de cheirar cédulas, um recorte preciso de sua personalidade —, Vennett tem de elaborar um meio de saciar seus apetites patológicos, e as fraquezas alheias lhe parecem uma excelente opção.

Baseado em “A Jogada do Século” (2011), livro em que o jornalista Michael Lewis expõe seus palpites quanto ao que teria fomentado o ambiente venenoso de extrema liberalidade econômica que degringolou numa das piores crises do mundo contemporâneo, o filme de McKay assinala quase nominalmente a responsabilidade de traders (investidores profissionais que ganham dinheiro com operações de curto prazo — principalmente ações e contratos futuros —, a despeito do mercado estar em alta ou em baixa) e administradores de fundos de hedge (investimentos que visam a proteger o valor de um ativo — ações e moedas, em especial — contra o sobe e desce da atividade especulativa), que souberam como poucos aproveitar a derrocada do mercado imobiliário, que por seu turno provocaria o desmantelamento dos títulos de hipotecas subprime, ou seja, as que tinham todo o perfil de resvalar na inadimplência. McKay e seus corroteiristas, Charles Randolph e o próprio Michael Lewis adaptam a história de modo a fazer o espectador crer que conforme os bancos se tornam o setor mais lucrativo dos Estados Unidos, essas instituições foram elaborando mecanismos cuja principal finalidade era contribuir para que os ricos ficassem mais ricos e o zé-ninguém mais encalacrasse cada vez mais. Conseguiram, como se vê, e não só: inspiraram bancos do mundo a fazer o mesmo, com grande sucesso. Só no país mais rico do mundo, os endividados somam 40,8% da população adulta, e muitos desses débitos remontam aos entreveros financeiros de 2008.

Sem academicismos de nenhuma ordem, “A Grande Aposta” é divertido, sem deixar de suscitar no público a necessidade de pensar no assunto e a comoção por quem ainda não conseguiu recobrar seu patrimônio. Sobrepondo três histórias, McKay conduz a narrativa dando a cada uma seu próprio pano de fundo, como se observa no caso de Michael Burry, o misantropo que troca uma brilhante carreira como médico justamente pela aversão a ter de lidar com todo tipo de gente por um cargo de chefia num dos maiores conglomerados de hedge da Costa Oeste, graças a seu raro talento para análise e cálculos mais complexos. Christian Bale, mais uma vez, deita e rola no papel e faz vir à superfície essa aura atormentada de Burry, encurralado entre fazer a coisa certa e ao mesmo tempo não mergulhar a empresa para a qual trabalha no caminho sem volta da perda da credibilidade e do que se convencionou chamar de higidez, horizonte que se descortina devido a um número incomum de hipotecas por vencerem. A fim de evitar a bancarrota, desenvolve uma modalidade de apostas contra o mercado de compra e venda de imóveis, tido pelos bancos por imunes a qualquer ataque. Tudo o que ele precisa é levar os bancos a desenvolver algo como uma apólice de seguro de títulos, e caso ele esteja certo e o mercado leve mesmo a breca, o dinheiro vai jorrar sem que precise mover uma palha mais. O problema é que enquanto os banqueiros não embarcam em sua canoa furada, ele e seu fundo terão de compensar o rombo, cobrindo investimentos e pagando prêmios.

A escolha pela metalinguagem, a fim de conferir a “A Grande Aposta” leveza ainda maior no trato de um assunto tão árido, revela-se um acerto, e a participação da atriz Margot Robbie e da cantora Selena Gomez como si mesmas, expondo seu ponto de vista sobre a crise e destrinchando nomenclaturas da terminologia do economês, dão ainda mais graça à trama. Steve Carell é o contraponto de racionalidade em meio a um exército de lunáticos que, ou se deixam seduzir pela ilusão de que seus crimes jamais serão descobertos ou tomam parte no esquema cônscios de que sua tentativa de se aposentar mais cedo pode redundar em cana. Mark Baum é o camicase que se volta contra seus iguais a fim de salvar parte de sua biografia, ainda que também saia bastante chamuscado. Nessa mesma frente, mas com léguas de vantagem, uma vez que pudera se tornar multimilionário e filantropo eventual, o Ben Rickert, personagem de Brad Pitt, se arvora em guru de Jamie Shipley e Charlie Geller, de Finn Wittrock e John Magaro, respectivamente. Os dois neófitos passam a atuar no campo minado que Rickert conhece bem e do qual saiu a tempo de preservar sua saúde mental. Hoje, prega para convertidos, admoestando os ricos a refrear seus ímpetos por mais um ou dois zeros à direita, e ajudando jovens sonhadores a ganhar dinheiro rápido, o que efetivamente acontece. Sua vingança é vê-los como ficam depois da valsa dançada, apalermados, sem saber como continuar na partida. Vazios.

É exatamente esse o sentimento que resta no peito e, em muitos casos, no semblante de muito espectador. O envolvimento direto ou oblíquo de quase todas as instituições financeiras americanas em expedientes desabridamente criminosos, em que a maioria dos tubarões escapa impune e a arraia miúda é quem vai para a panela — frise-se que estamos falando dos Estados Unidos — é uma fonte inesgotável do veneno que todos, em qualquer parte do globo, somos obrigados a engolir em maior ou menor medida, mas o que revolta mesmo é saber que mais cedo ou mais tarde sempre pode estourar outra bomba no colo do pagador de impostos, sem o qual bancos e governos, que os financiam em alguma proporção, não resistiriam. Chutando o balde do deboche, “A Grande Aposta” defende esse raciocínio com unhas e dentes. Por isso, é impossível não admirar a doidice de Adam McKay.


Filme: A Grande Aposta
Direção:
Adam McKay
Ano: 2015
Gênero: Comédia
Nota: 9/10