Um pequeno diamante escondido na Netflix

Um pequeno diamante escondido na Netflix

“Nosso Próximo Verão” (2021) revela-se uma boa surpresa. À primeira vista só mais um enredo sobre recortes sensíveis da agrura existencial de um personagem que sofre, o filme de Leste Chen cresce para além de seu tamanho natural e apresenta-se como uma comédia romântica inteligente, conduzida por um elenco afinado que deixa a história com um leve teor melodramático.

É difícil objetar-se a não replicar modelos já acabados que se provam acertados quanto a desenvolver um roteiro do ponto de vista cinematográfico. As alternativas são muitas e por isso mesmo a iminência da catástrofe passa a integrar o processo. É louvável o destemor de Leste Chen em trabalhar o texto de Shen Yang de uma maneira cuja obediência a padrões se faz notar com desassombro, só para que, a certa altura, ele dê uma guinada e coloque sua própria alma no que é levado à cena. Talvez o diretor tenha optado por esse método inconscientemente, porque não viu saída melhor, por ter preferido não queimar toda a lenha logo na partida; o caso é que, do modo como está constituído, “Nosso Próximo Verão” acaba por se revestir de uma novidade qualquer, ainda que mínima, mas essa sutileza vai se assenhoreando de quem assiste, e mesmo quem começa com um pé atrás, vai até o fim, ávido por saber como vai acabar aquilo. E não se arrepende.

Chen Chen enfrenta a ansiedade dos dias que antecedem o vestibular não por ser má aluna ou não ter estudado o bastante — na verdade, seu mal foi ter se dedicado tanto à prova, que julgava a coisa mais importante de sua vida. Essa obsessão a enfraquecera para outras demandas de sua natureza, que não devia ter negligenciado. A personagem de Wendy Zhang, num desempenho em que as emoções estão sempre todas muito bem-dispostas, parece fugir de um fantasma que a atormenta já há algum tempo, encarnado por Zheng Yu Xing, um tipo meio gaiato, não exatamente torpe mas bem longe de ser uma boa influência. É claro que Chen Chen e Zheng Yu Xing, vivido por Leo Wu, vão se interessar um pelo outro em alguma quadra de “Nosso Próximo Verão”, e é a descoberta de um sentimento latente, mas que não tarda a despertar em todo o seu vigor, que transforma a vida dos dois, em sentidos opostos.

A reprovação de Chen Chen é justamente questionada por seus pais, que sabem que há algum mistério — o mistério possível a uma adolescente de 17 anos — por trás de seu fracasso, e a palavra não é mera força de expressão. As sociedades asiáticas, altamente competitivas, sobrevalorizam a prosperidade, a capacidade de alguém de se dar bem à custa de empenho, preparo intelectual e trabalho, e o vestibular é o primeiro passo (e o decisivo) para tanto. O que não se sabia até então é que os pais da protagonista, cujo casamento passa por dificuldades, têm participação na desdita da garota, muito maior do que poderiam imaginar. Contrariando o que o espectador supunha, Zheng não é o vilão dessa história e malgrado desvende a farsa de Chen Chen não anseia por desmascará-la, pondo em risco sua reputação de bad boy. E isso certamente quer dizer alguma coisa, para ela e para si mesmo.

A conformidade entre Zhang e Wu é capaz de segurar o filme quase todo, não se perdendo tempo com maiores explicações acerca do que está havendo com os pais de Chen Chen, e nem se percebe a rapidez com que a história avança quando os dois estão juntos, seja manifestando hostilidades mútuas, seja partilhando segredos que nunca haviam sido ditos em voz alta. Debruçando-se sobre os amores de juventude, que têm a propriedade de se concretizarem ou permanecerem para sempre sob a aura do desejo, do sonho, “Nosso Próximo Verão” destrincha o sentimento amoroso na alvorada da vida sob a ótica de dois personagens jovens que servem de anteparo um ao outro quanto a administrar o caos, que a adolescência legitima como parte do cotidiano. Mesmo excepcionalmente maduros para pessoas tão inexperientes, Chen Chen e Zheng Yu Xing sofrem da ansiedade e do falso alívio por se reconhecerem produto de famílias desestruturadas. Os dois têm o coração partido por motivos semelhantes e, dessa forma, entendem um ao outro. O que se passa entre eles depois acontece a qualquer casal, a despeito de serem ou não jovens.

Decerto o grande trunfo de Leste Chen é saber tocar seu filme de forma a realçar o desarranjo do todo sem que as subtramas percam relevância, em especial a que define o jeito como a protagonista é entendida, e para que se alcance tal resultado, a sensibilidade do espectador é fundamental. Não se pode apontar com precisão em que momento passa-se de fato a se prestar atenção no enredo com mais entusiasmo, mas há passagens realmente lapidares. Ainda na introdução, muito bem construída, já se nota que os dois personagens irão cumprir o arco dramático convencional nessas histórias, um não acabar de idas e vindas, num ciclo exaustivo de atração e repulsa pontuado com argúcia pela trilha sonora — outro palpite feliz de Chen —, que quase explica o que vai acontecer. Ao menor descuido, o público se depara com uma narrativa inteiramente nova, cujo desfecho pode até não ser o que ele imaginava, mas agrada assim mesmo.


Filme: Nosso Próximo Verão
Direção: Leste Chen
Ano: 2021
Gênero: Drama/Coming-of-age
Nota: 8/10