Suspense tecnológico na Netflix, que deixará o espectador tenso por 130 minutos, é o filme mais impactante de 2022

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Depois dos curtas-metragens “Lemantun” (2014), “Lembusura” (2015), “The Floating Chopin” (2016), “Prenjak” (2016) e “No One is Crazy in This Town” (2019), o indonésio Wregas Bhanuteja se provou, enfim, um autor maduro. Falando de dramas familiares que se tornam insustentáveis numa realidade opressora, irrigada pelo rigor religioso e pela pobreza, “As Fotos Vazadas” (2021) apresenta algumas das dificuldades que se tem para se subir na vida quando talento e honestidade são quase todo o capital de que se dispõe para isso.

Bhanuteja já abre seu filme compondo um perfil diligentemente apurado da protagonista, Suryani. A personagem de Shenina Cinnamon é uma garota sem maiores encantos, salvo pela dedicação aos estudos, o que, crê, é capaz de dar-lhe condições de ascender socialmente. E ela se sai bem nessa missão: quando não está na faculdade, está ajudando os pais na pequena lanchonete que mantêm num bairro afastado de Jacarta, tudo como mandam os costumes islâmicos, ou cumprindo as atividades voluntárias exigidas pela reitoria para a preservação da bolsa de estudos que lhe permite frequentar as aulas numa instituição de tanta qualidade como a Mata Hari. Sur é a responsável por desenvolver e alimentar o site da companhia de teatro, e se destaca. A nova apresentação do grupo, uma releitura de histórias da mitologia grega, é aclamada no circuito alternativo e em comemoração, Rama, que escreveu o texto, dá uma festa, para a qual a anti-heroína é convidada de última hora, meio à contragosto do anfitrião, mas aceita ir de imediato.

A despeito do patrimônio de cada um, logo resta claro que o personagem de Giulio Parengkuan e Sur pertencem a mundos que não se tocam. Rama é muito rico, filho de artista e, à medida que a história avança, percebe-se que seu liberalismo diante da vida esconde uma boa parcela do comodismo covarde de sempre teve de tudo, não foi obrigado a empreender suas conquistas por si só e quer que tudo continue exatamente assim. A protagonista nunca soube o que é luxo; filha única de um casal pobre, cuja maior herança que podem lhe transmitir é mesmo uma vida pautada pela correção moral, uma das condições que Sur teve de jurar ao pai que observaria era não ingerir álcool. Ela chega acompanhada de Amin, de Chicco Kurniawan, seu amigo de infância, hoje funcionário da fotocopiadora da universidade, com quem combinara que iriam embora às oito da noite. Conforme vai se soltando, Sur toma uma ou outra dose, Amin sai sem ela e no dia seguinte sua vida parece ter acabado: diversas selfies em que aparece bêbada foram postadas em seu perfil numa rede social.

Um episódio que passaria sem maiores consequências numa outra conjuntura qualquer adquire o status de tragédia para quem só tem o próprio nome para falar em sua defesa. Sur chegara muito depois do horário combinado com Amin, carregada por estranhos, e toda a vizinhança passa a saber da história. Acorda tarde, quase perde a audiência com os representantes dos mantenedores do programa de bolsas,  mas não todo o seu esforço não adianta. A eles é reservado o direito de vetar a participação de estudantes que infligem os códigos morais, e Sur está fora. Volta para casa só para saber que o pai, furioso, lhe destina o mesmo tratamento e a põe na rua. Mesmo magoada com Amin, pede-lhe ajuda — até porque, a princípio, ele é a única pessoa com quem pode contar — e valendo-se do anexo da fotocopiadora, onde o amigo mora, estabelece seu quartel-general a fim de metodizar suas investigações, com direito a uma rede que lhe permite hackear os computadores dos colegas que compareceram à festa de Rama, uma esperança de que chegue aos culpados por sua desgraça. Apenas uma esperança, mas reavivada por figuras como Farah, vivida por Lutesha, que lhe havia alertado, ainda que obliquamente, sobre evitar essas interações sociais aparentemente sem segundas intenções.

“As Fotos Vazadas” não tem nada de mais, o que lhe confere uma margem de acertos infinitamente mais ampla que os equívocos em cascatas que filmes congêneres, de diretores muito mais experimentados, teimam em sustentar. Um deles é abordar o detetive como o salvador da Pátria, um sujeito quiçá dotado de poderes sobrenaturais que faz com que todos os problemas da trama pareçam um joguinho tolo, em que sempre se consagra vencedor e do qual enjoa depressa. Uma das características mais inovadoras neste primeiro trabalho de fôlego de Bhanuteja é evitar alongar demais o enredo que sustenta o filme, dando autonomia à sua personagem central para resolver suas próprias questões — do contrário, não faria sentido dar tamanha ênfase a seus talentos para assuntos cibernéticos — e poupando tempo para desenvolver alguns arcos dramáticos numa narrativa caudalosa de mais de duas horas. “As Fotos Vazadas” mostra a personagem de Cinnamon vilipendiada, ferida, realçando seu aspecto de sobrevivente, mas ávida por justiça, e fazendo dessa sua nova condição um renascimento. O diretor chega a esse resultado louvável ao passo que tece uma glosa social certeira à disparidade no apoio das instituições para ricos e pobres, ao patriarcalismo das famílias muçulmanas na Indonésia e aos perigos das redes sociais, respaldado por um elenco que responde à altura. A performance de Shenina Cinnamon, que confere à Sur a crueza emocional que é a essência mesma da personagem, providencialmente substituída por um lado patologicamente malicioso, em que deve encarar qualquer um sob a forma de um inimigo calculista e perverso. Seu amadurecimento forçado, de garota ingênua para uma justiceira encarniçada, conta com o amparo de Lutesha, numa transição interessante entre a carreira de modelo e a consolidação de seu trabalho na arte dramática.

Por óbvio, as estratégias de que Sur lança mão no intuito de levar a cabo sua vingança suscitam intermináveis discussões filosóficas sob a perspectiva ética, mas o sentimento de retaliação é, por si só, quase que apenas bestial, malgrado quando se precisa de sofisticação intelectual para sair do papel. Outras questões, essas, sim, graves, permanecem sem resposta, silenciadas por razões mercadológicas. Três dias antes de começar a ser divulgado, levantou-se contra o filme uma série de acusações de assédio sexual envolvendo um membro da equipe cujo nome eles preferiram manter sob sigilo. O crime teria ocorrido num passado já distante, mas ainda assim o acusado teve seu nome apagado dos créditos e está banido da Rekata Studio, produtora responsável por rodar o filme e blindá-lo de qualquer importunação.

Há quem não tenha se conformado e siga condenando o filme por defeitos que sequer lhe dizem respeito, apesar de uma história de bastidor dessa natureza ser de uma ironia saborosa. Quanto ao que importa, “As Fotos Vazadas” é um suspense que transcende o mistério, e discorre sem medo sobre os lados de sombras do gênero humano e o que significa viver sob o tacão de uma vergonha que se impõe sem prévio aviso.


Filme: As Fotos Vazadas
Direção: Wregas Bhanuteja
Ano: 2021
Gênero: Suspense/Ação/Coming-of-age
Nota: 9/10