Um dos mais belos filmes do cinema brasileiro acaba de chegar à Netflix

Um dos mais belos filmes do cinema brasileiro acaba de chegar à Netflix

Clássicos da literatura despertam o interesse de outras mídias há muito tempo, e “Meu Pé de Laranja Lima” tem uma trajetória ainda mais peculiar. O romance infantojuvenil de José Mauro Vasconcelos (1920-1984), pelo qual tornou-se conhecido nacionalmente, foi apresentado sob a forma de telenovela em duas ocasiões, em 1970 e 1998, exibidas pela Tupi e pela Rede Bandeirantes, respectivamente. A história do menino pobre, que tem num arbustozinho do quintal do casebre onde mora seu único amigo, virou filme pela primeira vez com roteiro e direção de Aurélio Teixeira (1926-1973), que também estrelou o longa, ainda em 1970, dois anos depois da publicação do livro, em 1968. Passadas mais de quatro décadas, em 2012, “Meu Pé de Laranja Lima” volta a receber atenção, contando com as tantas inovações tecnológicas de que o cinema se apropriou — coisa de que a literatura pode se dispensar —, mas mantendo, a despeito de pequenas modificações visuais e na caracterização dos personagens, a essência da trama, universal justamente por tratar de temas tão íntimos.

Ao longo do filme, o diretor Marcos Bernstein — que, junto com o novelista João Emanuel Carneiro, foi colaborador de Walter Salles no roteiro de “Central do Brasil” (1998), ainda hoje uma das produções brasileiras mais prestigiadas no mundo — mantém aquela aura de dicotomia entre a vida tranquila no campo e a loucura de se viver numa cidade grande, que nunca aparece fisicamente, mas que sempre acaba vindo à cena nas imagens que Zezé, o protagonista, evoca. Uma provocação encampada por Bernstein é conferir ao menino a maturidade que grande parte dos adultos do enredo não tem. Ser criança num rincão perdido no interior do Brasil pode até ser mais divertido e muito mais saudável que numa metrópole, mas, como o protagonista deixa explícito, há um momento em que diversão torna-se enfado e a pretensa salubridade do ar puro, da vegetação intacta e dos olhos d’água abundantes convertem-se em loucura.

Na versão original, do livro, Zezé é filho de nordestinos que migraram para Bangu, bairro da periferia do Rio de Janeiro, onde o garoto nasce, mas no filme, Bernstein prefere transpor a história para outro cenário, um acerto, já que não resta mais nada da Bangu de noventa anos atrás, quando se passa a história de Vasconcelos. Antes um bairro sossegado, rural, como todo o entorno da então capital da República, hoje Bangu é uma zona urbana como outra qualquer, que sofre com a criminalidade, tomada de gente, carros e, por óbvio, de asfalto, muito asfalto, o que justifica parte da fama de lugar mais quente do Rio. No filme, o personagem central, interpretado por João Guilherme Ávila, mora com os pais e os irmãos numa casa humilde num município pouco desenvolvido de Minas Gerais. Quarto filho de uma fieira de cinco, com idades entre quinze e quatro anos — e essa poderia ser outra controvérsia na releitura do diretor, uma vez que Zezé tem cinco anos na pena de Vasconcelos e aparenta dez no filme —, Zezé sonha em abandonar sua terra, que já sabe que ela não lhe reserva futuro algum digno desse nome (daí a opção por aumentar a idade do menino), angústia tanto maior quando se depara com a figura do pai, Paulo, vivido por Eduardo Dascar, desempregado, bêbado e violento, ao passo que Selma, a mãe, de Fernanda Vianna, tem de ficar ausente no decorrer da semana, por causa do trabalho em outra cidade, a fim de sustentar a família. Completamente deslocado e sozinho, mesmo sempre rodeado por tanta gente, o personagem de Ávila só encontra alento nas conversas com o pé de laranja lima do título, chamado por ele de Minguinho (no livro é Xururuca). Só Minguinho é capaz de entender suas dores e perdoar sua revolta, por ser o único a saber que o garoto merece mais da vida.

Em essência um coming-of-age, “Meu Pé de Laranja Lima” já era revolucionário desde o primeiro tratamento, no romance de José Mauro Vasconcelos, ao abordar questões como negligência parental, emancipação feminina — compulsória, neste caso —, violência doméstica e suicídio. A entrada em cena de Manuel Valadares, o Portuga, com o filme pela metade, traz à baila o incômodo provocado pela amizade de um homem maduro e um garoto. O personagem de José de Abreu, assim como Zezé, é um tipo melancólico, quase avesso a interações sociais, que acha no menino a oportunidade de exercer seu instinto paternal, há muito sufocado, já que a única filha, adulta, vive na Europa. Mesmo depois de um entrevero em que discutem por uma questão relacionada ao calhambeque de Portuga e Zezé acaba tomando umas palmadas do velho, o menino enxerga bondade nele quando lhe oferece carona. Zezé, que mancava por causa de mais uma de suas inúmeras travessuras, aceita e sobe no carro, elemento importante no segmento final.

O relacionamento que os dois passam a construir, profundo, mas também pautado por incoerências, passa a dar o tom da história. Portuga torna-se para Zezé seu verdadeiro pai, dando-lhe a caneta que ganhara de herança, levando-o a passear em seu carro mágico, a pescar no riacho, a fazer piqueniques à sombra de sua árvore, sem nome, mas muito maior que Minguinho. Essa sequência decerto é a fonte de toda a polêmica em “Meu Pé de Laranja Lima”, por causa de um gesto algo dúbio de Portuga, que, por seu turno, motiva a reação involuntariamente desconcertada de Zezé, um descuido grave da direção. Fica-se sem saber o que de fato se deu a seguir, e a performance de José de Abreu, espantosamente irregular, não colabora. Não se consegue apontar nada de excepcional em seu desempenho e é impossível se dizer com certeza o que de fato queria com o garoto — ainda que nunca se passe dessa marca, frise-se. Aliás, não se consegue sequer acreditar que Portuga seja mesmo português, dada a vacilação do sotaque, um vexame de proporções ultracontinentais.

Dispondo da fotografia sensível de Gustavo Hadba, que ilumina e escurece o ambiente a depender de onde Zezé esteja — quando em casa, o menino e os demais personagens são sempre envoltos por uma penumbra fantasmagórica, como se aquele fosse mesmo um lugar de morte —, expondo a mente sonhadora, delirante do protagonista, “Meu Pé de Laranja Lima” compõe o retrato de uma infância talvez mais sombria que propriamente alegre, e é quase impossível a qualquer indivíduo alegar, a certa quadra da vida, que se foi feliz em criança, visto que a maturidade nos mostra ângulos sobre essa fase que nos eram de todo obscuros àquela época. O que se pode dizer com todas as letras é que a infância é o lugarzinho mágico para onde tratamos de nos despachar sem tardança ao menor sinal de fogo na mata fechada e repleta de perigos que circunda a vida adulta. Esse espírito da história de José Mauro Vasconcelos Marcos Bernstein capta à perfeição em “Meu Pé de Laranja Lima”.


Filme: Meu Pé de Laranja Lima
Direção: Marcos Bernstein
Ano: 2012
Gênero: Drama/Coming-of-age
Nota: 7/10