Filme na Netflix mistura realidade e ficção para celebrar o poeta Pablo Neruda e o poder da literatura Divulgação / AZ Films

Filme na Netflix mistura realidade e ficção para celebrar o poeta Pablo Neruda e o poder da literatura

Pablo Larrain é um diretor engajado. Frequentemente cutucando velhas chagas da história de seu país, Larrain aponta um Chile ainda por se conhecer, sem medo de patrulhas de qualquer ordem. Uma coisa se louve no caráter do povo chileno. Ao contrário de muitos de seus confrades sul-americanos, o chileno não se peja de assumir seus erros, tampouco de vangloriar-se do que e de quem sente merecido orgulho, dentre os quais Pablo Neruda (1904-1973) é, decerto, o mais internacionalmente célebre. “Neruda”, levado às telas por Larrain em 2016 tomando por base o roteiro de Guillermo Calderón, se espraia sobre o que houve com a nação andina logo após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), concentrando-se em seu personagem-título e em todas as muitas contradições em torno de sua opulenta figura.

Pablo Neruda, nome artístico — ou nome de guerra, como ele preferia — de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, publicou seu primeiro livro cedo. Em 1923, aos dezenove anos, sai do prelo “Crepusculario”, compilação de poemas com as verdes impressões do poeta acerca do amor e seus descaminhos. Já no ano seguinte, “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada”, visivelmente mais maduro, traça paralelos entre o corpo da mulher e a natureza, duas paixões de Neruda, temas recorrentes ao longo de sua vasta produção literária. Assim como entre o belo sexo e as montanhas de Machu Picchu, tema de uma de suas primeiras odes, Neruda também se dividia entre a arte e a política. Seu desempenho como diplomata foi essencial a fim de que concretizasse o sonho de se eleger senador em 1945, pelo Partido Comunista do Chile. E é justamente por aí que “Neruda” segue.

A sequência de abertura do filme mostra o poeta, em pleno exercício do cargo na Câmara Alta do Chile, em 1948, se dirigindo a uma reunião no suntuoso banheiro do Senado, um costume adotado para não se perder tempo em dias de discussões importantes — e também para se manter a imprensa a distância, por óbvio. E era mesmo o caso: se elucubrava acerca da responsabilidade dos congressistas pela eleição de Gabriel González Videla (1898-1980), eleito democraticamente, mas que protagonizava um governo desastroso, que flertava desabridamente com a tirania.

Larrain deixa claro o estilo de vida pomposo e desregrado de Neruda, muito diferente do que se vira em “O Carteiro e o Poeta” (1994), de Michael Radford. O poeta-senador é mostrado por Larrain como de fato era: um dândi, dono de uma mansão faustosa, em que oferecia festas que não raro descambavam em orgias faunescas. Usufruindo de todas as regalias de suas duas vidas, Neruda é o típico representante da esquerda limusine, ou esquerda caviar, termo mais atual. A dada altura do enredo, um narrador oculto diz que Neruda e seus correligionários são os esquerdistas que nunca dormiram no chão; mais adiante, num convescote em que a política e o sentimento artístico sentam-se à mesma mesa sem cerimônia, ouve as inconfidências de uma militante histórica, pobre, envergonhadamente arrependida, que quer saber se o comunismo os igualaria todos a ela ou a ele. Bingo.

A composição de Neruda, uma performance mediúnica de Luis Gnecco, se reveste, enfim, das tantas antinomias que constituíram sua atuação como homem de letras que celebrava em sua obra valores que julgava alcançáveis a qualquer indivíduo. A partir de então, “Neruda” ingressa num segundo ato sombrio, em que passa a ser verdadeiramente caçado depois da interdição do Partido Comunista. Óscar Peluchonneau, o detetive ficcional vivido por Gael García Bernal, espécie de encarnação do espírito de desprezo pelas instituições e pelas liberdades individuais, é incumbido de prender o personagem-título, missão de que se assenhora com todo o fervor de uma alma perturbada. Neruda deixa o Chile e parte para o autoexílio, seguindo até a fronteira argentina de carro e de lá continua a cavalo pelos pampas nevados, circundados pela Cordilheira dos Andes, até o esconderijo que seus colegas de legenda lhe conseguiram. Em 1952, Neruda ruma para a ilha de Capri, no Golfo de Nápoles, sul da Itália. Sua segunda mulher, Delia del Carril (1884-1889), papel de Mercedes Morán, permaneceu no Chile, mas manteve com o ex-companheiro correspondência perene. Em 1973, já de volta à pátria, e oficialmente unido a Matilde Urrutia (1912-1985), sua amante por décadas, Pablo Neruda sucumbe a um câncer de próstata — episódio ainda hoje eivado de mistério —, em 23 de setembro. Seu sonho de liberdade comunista (e sua própria vida) se encerravam da pior forma: o socialista marxista Salvador Allende (1908-1973) ascende ao Palácio de La Moneda pelo voto, mas deixa a sede do Executivo federal morto. Havia cometido suicídio, acossado por Augusto Pinochet (1915-2006), chefe da ditadura que se arrastou por dezessete anos e empilhou mais de três mil cadáveres, encarcerou oitenta mil presos políticos e submeteu à tortura outros trinta mil. Dados que ficaram de fora do trabalho de Pablo Larrain.