Cativante, comovente e violento, filme francês da Netflix é uma joia do neorrealismo moderno

Cativante, comovente e violento, filme francês da Netflix é uma joia do neorrealismo moderno

Por mais estranho que possa parecer, “Shéhérazade” é um filme de família, e ainda que de um modo bastante torto, também é uma história de amor, dirigida por alguém que entende do que está falando.

Jean-Bernard Marlin conhece muito bem o ambiente que se propôs a explorar. Marselhês da gema, Marlin retrata como poucos a realidade contraditória de uma cidade pobre num dos países mais desenvolvidos do mundo — e tanto pior em se considerando que Paris fica logo ali, a menos de setecentos quilômetros. Na capital francesa também há menores abandonados, devidamente assistidos pelo poder público, prostitutas, cafetões e, por óbvio, traficantes — grande parte deles composta de imigrantes norte-africanos, árabes, centro-americanos e latinos, nessa ordem, é forçoso dizer. Todavia, em Marselha as perspectivas de que alguma coisa venha a mudar são mínimas, como só se a Île-de-France merecesse um olhar mais cauteloso das autoridades.

Paris pode até concentrar todas as atenções dos poderosos da França, entretanto Marlin faz questão de se lembrar de sua cidade natal, principalmente de seus problemas. Em Marselha, o quadro social é constituído de uma paisagem monocrática, cinzenta, plúmbea: rapazes começam como mulas, entregando papelotes de maconha e pinos de cocaína aos doze anos, para, em tendo sorte e não sendo mortos, conseguir seu próprio esquema antes dos dezessete; quanto às moças, a única alternativa é vagar pelas ruas, oferecendo algum prazer, observadas de perto por um homem mais velho, incumbido de lhes proteger de clientes mais afoitos e de não permitir que embolsem um centavo a mais do que o combinado. A esterilidade sentimental dessas criaturas, que se alastram por uma cidade portuária esquecida, reflexo de sua própria decadência e, por extensão, do progressivo fracasso de qualquer modelo civilizatório, é captada em todo o seu neorrealismo inovador por Marlin, em especial a partir do segundo ato de “Shéhérazade”, quando o roteiro escrito com Catherine Paillé assume seu aspecto dramático sem mais todo aquele glacê sociológico do início — mas que é esquecido por completo, graças a escolhas estético-conteudísticas do diretor, como se valer de um elenco não-profissional que em alguma medida sente o peso do que é levado à cena.

“Shéhérazade” é um amálgama de “The Runaway” (2013), (ou “La Fugue” no original), curta bem-sucedido sobre uma garota perdida, completamente à margem, que só tem um amigo, desgraçado como ela, com quem contar, e “Something Fierce” (2014), documentário que registra a vida de Jamal, um adolescente de 15 anos que começa, a exemplo de tantos outros, uma verdadeira peregrinação por reformatórios, sem nenhum indício de que algum dia vá se emendar. Dando a partida com um belo mosaico feito de imagens de arquivo em preto e branco, um retrato poético e dolorido do desembarque dos imigrantes norte-africanos na França no princípio do século 20, Marlin dá uma guinada para o ano da narrativa, 2019, onde está Zach, um ex-menino de rua de dezesseis anos que acaba de cumprir sua primeira sentença por assalto à mão armada numa prisão juvenil e agora precisa ganhar a vida. Dylan Robert, que partilha com seu personagem uma trajetória de abusos e negligência parental, não interpreta Zach: ele é Zach. Sempre meio emburrado, o garoto até que tem um bom astral para alguém com seu histórico, o de um adolescente que precisa se equilibrar na corda bamba que é sua vida, pendendo ora para o crime, ora para a vontade nele quase contranatural de se emendar e ser como qualquer outra pessoa, o que leva o espectador ao delírio. Zach tem de se submeter a dormir numa casa de recuperação, porque a mãe, desempregada, não pode sustentá-lo — ainda que o namorado que não o suporta desde o primeiro instante seja o motivo que mais conta para que ela renuncie à sua guarda. Não está totalmente livre, mas está solto.

Para festejar sua soltura, os amigos de farra, os únicos que conhece, o presenteiam com uma das prostitutas que dão expediente nos inferninhos das redondezas, e é assim que ele conhece Shéhérazade, a personagem vivida por Kenza Fortas. Depois de um approach meio estúpido, como sói acontecer entre dois adolescentes que pensam conhecer a vida e, mais importante, pensam saber o que querem dela, vão para a cama e nada acontece (mas Shéhérazade fica com o tijolo de haxixe que Zach lhe oferece). Seu vai ou não vai açula a curiosidade do garoto, e só a partir de então passa se vislumbrar que pode nascer um romance dali. O protagonista vai ficando, dormindo de favor no quarto que a personagem-título aluga (a contragosto dela) com Zelda, uma mulher transexual de rara sensibilidade, interpretada por Sofia Bent, mas é obrigado a tentar se reerguer de mais essa rasteira que o destino lhe passa: está apaixonado por uma mulher que não pode ser só dele e que o faz encarar essa realidade da maneira mais humilhante.

O envolvimento de Zach e Shéhérazade é mesmo incomum. Almas gêmeas — e malditas —, deveriam estar ambos preocupados em mudar de vida, mas a força do meio os sufoca, e Shéhérazade continua a se prostituir com Zelda e as outras meretrizes, orgulhosas de seu ofício. Zach, por seu turno, se mete numa confusão atrás da outra; sua rixa com Os Búlgaros, uma gangue de bandidos cujas famílias vieram do Leste Europeu, por disputa de território na distribuição de entorpecentes, não é nada perto do imbróglio que cria ao desafiar Ryad, seu então melhor amigo, personagem de Idir Azougli, que exige ser atendido por Shéhérazade, e sem pagar. A falta de traquejo em lidar com uma situação delicada, que não deveria estar no horizonte de alguém tão inexperiente, o leva ao cárcere outra vez, em circunstâncias que degringolam em mais violência, como se assiste numa das sequências finais de “Shéhérazade”.

Soa incoerente que um filme que toma forma, se estrutura e cresce sempre sob a perspectiva masculina — malgrado Zach seja tão imaturo —, seja intitulado com um nome de mulher, que, ao fim da história, resta de todo incógnita, outra das escolhas decisivas de Jean-Bernard Marlin. Shéhérazade é, de fato, uma personagem secundária, mas vital para Zach. Talvez o amor seja isso.