Breve sinopse do cativeiro Foto / Arquivo Público de São Paulo

Breve sinopse do cativeiro

Virginia foi flagrada beijando o noivo da prima. A prima traída não aguenta e se enforca no banheiro, e a mãe dela, tia de Virginia, joga uma maldição na traidora. Que se casa com Ismael. Ismael é um negro que odeia ser negro, um negro bem-sucedido e invejoso que é um lixo humano. Virginia é tão alva quanto o marido é negro.

Nelson Rodrigues é fruto e sintoma da classe média brasileira dos anos quarenta e cinquenta, talvez a mais cínica, próspera, travada e ingênua de todo o século 20, hoje, vivemos os estertores dos desdobramentos dessa época, a sociedade mudou e a classe média dos “anos dourados” (da qual Nelson banqueteou-se com genialidade) dentro de cinco ou dez anos, simplesmente não existirá.  Enquanto isso, apesar de trôpego e cambaleante, ainda pode causar muitos estragos. Nos próximos, vá lá, seis anos, continuará sendo não só o maior dramaturgo, mas o maior problema das letras que o Brasil produziu no século 20.

Ismael mantém a esposa em cativeiro e a estupra seguidamente, durante anos. Bom dizer que rola muito tesão nessa relação doentia.

Depois de NR, apareceram mais dois autores que quase chegaram a voar tão alto quanto, porém não o alcançaram. Não vou citá-los porque essa crônica trata de um deserto particular. E depois destas duas avis-raras não surgiu e não vai surgir nada parecido porque, desde os noventa do século passado e no decorrer das primeiras décadas do século 21, o ofício foi perdendo a relevância até que chegou quase a inutilidade. Não é questão de falta de talento. Mas de tecnologia e emburrecimento seguidos de violenta censura e autoafirmação das nulidades coletivas. O idiota ascendeu e tomou o poder — como previra Nelson — e tornou-se um implacável perseguidor e exterminador das exceções, do gênio e do brilho das individualidades. A inegável e brochante Pax da superioridade numérica não admite sob hipótese alguma o risco de ter contestado seus ideais de ódio, bem-comum e igualdade na pasmaceira, ou todos são artistas, lindos, geniais e maravilhosos ou ninguém mais é: abaixa-se o sarrafo ou ele vai cantar. Nem pense numa piada. Parece até uma distopia escrita por um chimpanzé. Ou o último sucesso do Barões da Pisadinha, dá na mesma. Se quiser pode chamar isso de Brasil 2021.

Ismael cega o meio-irmão, Elias, porque era bonito e branco (no futuro cegará a filha branca de sua mulher, Virginia, que por sua vez afogou no tanque os filhos mestiços que teve com Ismael enquanto desencardia a roupa suja).  A peça é uma sucessão de aberrações, assassinatos e mutilações de almas. Um estudo profundo sobre as cegueiras humanas, físicas e metafísicas, que transporta o ensaio de Saramago para o recreio do jardim da infância.

O muar que, hoje, atende por “ser-humano” comunica-se (ou pulveriza-se) de outra maneira; bem menos sutil que o Ismael de Nelson Rodrigues, uma vez que escritores, cronistas e ensaístas são como sapateiros e alfaiates, peças de museu. Se alguém me perguntasse o que aconteceu depois de NR, eu diria:  vá até o Youtube e veja os vídeos de Whindersson Nunes. Ou melhor, vá até o Tik Tok, porque para os pós milenials, Whindersson pode soar tão prolixo como Sheakespeare. Evidentemente que o “comediante” piauiense não é sucessor de Nelson Rodrigues nem de Sheakespeare, mas — pasmem — é tão contundente quanto. Aliás, para se alcançar qualquer contundência atualmente não é preciso muito esforço. A questão toda, repito, passa pela tecnologia. A plateia de NR morreu de sífilis e tuberculose.

Esqueci de falar do tesão de Virginia por Elias, o meio-irmão branco de Ismael (filho do italiano) cujo rosto “exprime uma doçura quase feminina”. Trata-se da oportunidade de Virginia de parir “algo” diferente de um mulato e de se vingar não só de Ismael, “mas de todos os negros”. Dessa traição nasce Ana Maria, alva como um querubim (consta que são alvos). Que, assim como o pai, Elias, foi devidamente cegada por Ismael. E posteriormente trancada num quarto onde somente Ismael, seu “pai” e benfeitor, teria acesso. Foi a maneira que ele encontrou de a livrar das imundices do mundo e da cor de sua pele, ou seja, a maneira muito particular de “protegê-la”. Nem é preciso contar qual o destino da menina-querubim.

A coisa é tão deprimente que até a audiência soropositiva do Cazuza, eminentemente a classe média dos grandes centros, foi rendida, modificada e amordaçada. Acabou a criatividade fruto do espanto-liberdade que historicamente serviu de combustível para todas as revoluções e manifestações do gênio humano nos últimos duzentos e vinte anos (99% vindos da classe média reprimida). Hoje, a classe média está acuada e rendida e apenas tem a informação de que é fruto e causa da maioria dos males que ameaçam a sobrevivência da espécie, não bastasse o medo e a culpa advindos das antigas culpas que carregam desde sempre, somaram-se as novas culpas que, agora, são estruturais e somente serão sanadas caso ela, classe média, seja riscada do mapa de uma vez por todas. De modo que sobraram apenas os “protocolos da cura” para essa gente que paga impostos e deve plano de saúde, algo que passa pela anulação e negação de si mesma e, em última análise, passa pela negação da própria identidade. Trancaram a classe média no quarto e a cegaram, e ela só tem que agradecer pelo bem que lhe fizeram. Agradecer até a morte, Ana Maria. Muita gratidão.

O que foram a Sífilis e a Aids perto da Covid e suas mutações? Mal comparando, o que é Nelson Rodrigues, o ex-gênio da agonizante classe média alfabetizada, doente e reprimida (graças a Deus), perto das políticas de afirmação, dos tik toks alimentados por algoritmos assassinos, do multiverso que vem aí para pulverizar aquilo que hoje já não tem identidade?

O que é, não sei. Mas NR foi, repito, o maior gênio literário que surgiu no Brasil no século 20.  Não é difícil provar tal afirmação e provocar um curto-circuito nos coletivos-ismaéis e nos algoritmos supracitados e em seus respectivos subprodutos. Basta fazer o que fiz acima, esboçar uma breve sinopse de uma pecinha dele, que é causa de interdição, medo, constrangimento e silêncio nos diretores, atores, atrizes e estudiosos do grande dramaturgo, algo que vai ao desencontro de todos os protocolos de segurança impostos pelos coletivos ismaéis que zelam pelo bem da arte e dos quartos de despejo. Uma peça que, decerto, causa vertigem nos curadores de feirinhas e prêmios literários patrocinados por grandes conglomerados bancários e diretores de redação preocupados com as pluralidades, o efeito estufa e com seus respectivos networks, é claro. Tipo “queima o filme” mesmo. Hoje NR é um problema. O proibidão dos proibidões.

Nelson é mais do que um autor, ele transcende a literatura e a dramaturgia. Também é um profeta. Da mesma linhagem dos profetas do antigo testamento, só que mais barra pesada. O sangue de Nelson Rodrigues escorre corrompido desde o Largo da Prainha, passa e se dilui no Jobi até chegar completamente gurmetizado nos saraus da Vila Madalena, como o sangue de Jeremias que verteu (menos corrompido, claro) no Templo Sagrado quando anunciou a destruição de Jerusalém. Ele é tão desagradável, ameaçador e lúcido quanto o filho do sacerdote Hilquias. Nelsão —também filho de um sacerdote empastelado — alertou sobre a prevalência o e domínio dos idiotas, que o festejam e anulam. Jeremias profetizou a invasão de Nabucodonosor, o cativeiro na Babilônia e todas as desgraças que seu povo havia de sofrer no exílio, ambas as profecias se cumpriram. E ambos os profetas foram ridicularizados, amaldiçoados e ignorados em suas respectivas épocas e lugares. A diferença é que o povo do antigo Reino de Judá viveu na própria carne a humilhante condição do cativeiro (afinal como ignorá-la?) todavia, guardava a expectativa de que iria retornar à Terra Santa e reconstruir o Templo de Jerusalém. Bem, passaram-se setenta anos e, graças a uma aliviada da parte de Deus e a uma jogada política de Ciro, rei da Pérsia, conseguiram voltar, meno male. Enquanto as Ana Marias que tiveram o azar de nascer depois de NR, festejam orgulhosa e alegremente a condição profética de cegueira e idiotia a que foram irremediavelmente designados por ele, o Anjo Pornográfico. Bora tatuar o toba? Profecia cumprida? No return?

“Anjo negro” tem mais ou menos o alcance de todos os filmes de Almodóvar elevados a milésima potência. Um buraco negro que suga e torna insignificante tudo que se aproxima dele — descontado o trocadilho: — um buraco negro em preto-e-branco. Uma peça maldita que merecia ser retomada nesses tempos em que os coletivos ismaéis e os seus subprodutos tomaram de assalto as prateleiras das livrarias e os consultórios dentários, as redes sociais, o direito consuetudinário e os portais & redações recheadas de inocentes úteis e analfabetos funcionais, parece que as melhores mentes e corações embarcaram num eunuquismo desenfreado e auto-suicida. Se autosacrificam por culpa, medo e muito oportuni$mo, pelo pecado maior, enfim, de terem sido constituídos pela mesma classe média que os pariu. A palavra de ordem é desconstrução. Por incrível que pareça, uma parte do resultado deste autoaniquilamento é positiva, e é a parte que gera inclusão, assistência social e muito ridículo alheio; impagável, por exemplo, acompanhar Mano Brown em processo de “desconstrução” no Youtube. Mas positiva sobretudo porque distrai — engana — um pouco a culpa da classe média pelo fato de existir enquanto classe média (ouroborus do capeta).

O mercado assimila, agradece e retribui em forma de muito prestígio e créditos de carbono — que é a mesma coisa do que cheque ao portador. O mercado nunca falha. Um parêntese dentro do parêntese: tudo contra o dióxido de carbono, os oportunistas e os inocentes úteis e nada contra a assistência social e as políticas partidárias e afirmativas, desde que não se comprem como arte e não se vendam como artistas. Tava pensando em ilustrar esse duplo parêntese, e citar um parágrafo de Kazantzákis junto com uma tirinha de Alison Bechdel, mas acho que é covardia e exagero, dá até pena cotejar, ilustração demais, deixa pra lá.

No passado NR foi acusado de tarado, hoje é fácil acusá-lo racista. Ao menos os reprimidos de ontem ensejavam uma certa tragédia doméstica e davam margem para o humor e a transcendência negras do autor. NR aproveitou e não se fez de rogado, embora amaldiçoado, deu muita sorte, nadou de braçada no oceano das repressões, taras e entraves de sua época, ah, que inveja. Não obstante, na cabeça do idiota desreprimido e engajado profetizado por NR, tudo que não é preto é branco e vice-versa: fácil em qualquer tempo e lugar é apontar o dedo e linchar, difícil é explicar a piada, difícil é transcender e escrever uma peça tão esclarecedora e antirracista e por isso mesmo tão intolerável e genial como “Anjo Negro”.

A pele que habito, versão NR, escrita em 1946. Para realizar a tara de possuir a mulher branca com quem sonhara não há outra alternativa senão incorporar o homem branco que sempre quis ser. A mulher branca estuprada, objeto de desejo do negro Ismael, é evidentemente depósito de esperma e de morte, como poderia ser o transe de uma cidade sitiada, um livro escrito na favela pela filha de um banqueiro, a próxima entrevistada da Fátima Bernardes, uma vaguinha na ABL ou uma cabeça falante na bancada do Jornal Nacional. Ismael também é Machado, Maju, Michael Jackson. Ismael, com certeza, é um vitiligo subversivo que ameaça misturar o preto com o branco, transformá-los numa só doença.

Taí, portanto, uma breve sinopse do cativeiro que festejamos como se fosse a terra prometida, a redenção/castração e futuro dos nossos filhotes eunucos ou natimortos, a profecia cumprida. Eis que é vindo o Reino dos Cegos e Idiotas.

Só queria ver o Lázaro Ramos encarnado em Ismael sob as tendinhas da Flip, e o horror das madames MST/Personalité com tamanha heresia. Arte na Flip! Uma vezinha só!  Depois disso poderiam vir as Sete Pragas do Egito, Nabucodonosor de braços dados com Jojô Todinho, o Gólgota, as bestas do apocalipse versão mangá, enfim, depois de estarmos vivendo na pele a profecia de NR qualquer dilúvio que vier será desses que “uma formiguinha atravessa a pé, com água pelas canelas”.