Novo filme da Netflix é uma obra de arte dolorosamente triste, delicada e linda e uma das promessas do Oscar 2022

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Citando o Harlem de 1929, o bairro negro por excelência da maior metrópole americana, num tempo em que ser negro não era nada bonito, “Identidade” remete a uma época de ouro do cinema — e de trevas para os Estados Unidos. O argumento central do filme de Rebecca Hall parece simples: Irene, interpretada por Tessa Thompson, e Clare, vivida por Ruth Negga, voltam a se encontrar, depois de anos sem se ver. À medida que retomam o contato, as duas partilham suas apreensões uma com a outra, ambas ansiando por exorcizar fantasmas que teimam em atormentá-las.

Irene e Clare são mulheres negras de pele clara, ou seja, esteticamente brancas — mas só sob a perspectiva visual mesmo. A ideia de que alguém cuja aparência de branco possa ser, na verdade, classificado como negro é um tanto confusa no Brasil, o que se explica por seu passado escravagista, que sacramentou o negro como um indivíduo de segunda classe, mas não só por isso. Nos Estados Unidos, a abordagem do tema do ponto de vista genético, que prega que alguém que tenha uma gota de sangue negro correndo nas veias é, por conseguinte, negro, acabaram, ainda que soe paradoxal, estimulando a luta de cidadãos não-brancos por seus direitos.

A população outrora chamada de cor nos Estados Unidos tem sofrido toda a sorte de preconceitos desde muito antes de 1929, quando se passa a trama, baseada no livro homônimo da escritora chicaguense Nella Larsen (1891-1964), que se radicou em Nova York. Mais de sessenta anos depois da aprovação da 13ª Emenda, em 6 de dezembro de 1865, justamente nos estertores da Guerra Civil Americana, em que o Sul escravagista e o Norte, a favor da abolição, se enfrentaram, a América ainda sofria com a segregação racial entre negros e brancos, e 40 anos depois, continuava a padecer desse mal, uma vez que negros encheram as ruas do pais clamando por igualdade, um pleito que, lamentavelmente, culminou no assassinato covarde do reverendo Martin Luther King (1929-1968), líder que pregava uma reação pacífica frente ao racismo, institucional, estrutural ou só ignorante mesmo. Em 2021, quase um século depois da publicação de “Identidade”, a questão racial ainda assombra a população americana, sob a forma de ataques de ódio de policiais caucasianos contra afro-americanos pobres, que mesmo pontuais, denotam, primeiramente, o despreparo das forças de segurança, e o preconceito velado que se cristalizou em determinadas esferas da sociedade ianque.

As protagonistas do longa, uma magnífica estreia de Hall como diretora, são antagônicas, mas se complementam. Apesar de alva, Irene, numa acepção do racismo internalizado de que é vítima, conhece o seu lugar e não abusa, não quer encrenca. Clare — uma brincadeira semântica de Larsen — parece muito satisfeita com seu cabelo platinado, que a fotografia em preto-e-branco do filme faz toda a questão de enaltecer, e foi adquirindo ao longo da vida um refinamento impensável a muitas moças brancas, e impossível a todas as negras (talvez tenha faltado uma providencial rinoplastia, a fim de deixar seu nariz tão fino quanto o de uma genuína princesa escandinava, papel que emula para sua vida, a despeito da cirurgia plástica estar ainda em seus primórdios nos anos 1920. Ironicamente, o Brasil, para onde, por sua vez, Irene e o marido, Brian, querem se mudar para fugir da discriminação racial [se eles soubessem…], transformou-se em campeão mundial na modalidade). Tanto empenho lhe garante o casamento com John, um homem de ascendência nórdica — da mesma forma como agiu a mãe da romancista, cujo segundo marido, Peter, o padrasto de quem toma o sobrenome por empréstimo, era dinamarquês —, que não desconfia da verdadeira origem de Clare, assim lhe parece. A esse propósito, ainda na primeira metade do enredo, quando as duas mulheres começam a se tornar próximas outra vez, Clare insinua que John pode, sim, ter suspeitado de sua “vergonha”, mas por orgulho viril, não dera o braço a torcer. Premissa que, se vai ver, não se sustenta. 

“Identidade” é, sem trocadilhos, um projeto de identificação para Rebecca Hall. A diretora confidenciou que seu interesse pela obra de Larsen nascera da descoberta de que ela própria tinha um avô negro que renegara seu passado. A elaboração do roteiro foi terapêutica quanto a ajudá-la a digerir um dos opróbrios escondidos que toda família tem, o que dá à produção a aura de autobiografia, de um diário íntimo que se volta a abastecer, e à medida que Hall supera o incômodo inicial com os esqueletos ocultos em seu armário, se revela uma realizadora corajosa, cujo destemor a leva a entregar um filme esteticamente irretocável, e a delicadeza da narrativa se retroalimenta dessa beleza, compondo um trabalho como poucos na história recente do cinema. Pode ter se tornado uma espécie de protocolo a ausência de cores quando da apropriação de temas sensíveis, até doídos, como fez Alfonso Cuáron com a doçura que lhe é peculiar em “Roma” (2018), mas o resultado compensa qualquer ranzinzice intelectual. Thompson e Negga apresentam desempenho acima da média, exibindo na tela a química que cria em torno da história todo o merecido burburinho que já experimenta, inclusive acerca de possíveis Oscars em 2022.

A trilha sonora de Devonté Hynes a um piano executado com destreza exalta o quanto há de Clare em Irene e vice-versa, duas figuras quebradiças, maltratadas pelo tempo em que viveram, cada qual de modo específico, que acabam se partindo, uma delas prematuramente, e para sempre. “Identidade” é o registro mais perfeito de uma era que já deveria estar morta. Todo o cuidado é sempre pouco.