O filme desconcertante e perturbador da Netflix que é um mergulho no escuro

O filme desconcertante e perturbador da Netflix que é um mergulho no escuro

Ser adulto nos obriga a tomar decisões a toda hora. É o momento em que decidimos priorizar a carreira em detrimento da vida afetiva, cristalizada num casamento que certamente nos tomaria o pouco tempo disponível para o aprimoramento profissional ou, pelo contrário, ir com mais calma, desacelerar, perdendo assim as grandes oportunidades da carreira, mas certos de que poderemos ter um lar pleno de aconchego, com filhos e uma mulher à espera. Enquanto não há nada sacramentado ainda, é a chance de se rever amigos que pareciam sumidos para sempre na bruma da memória.

Em “Calibre” (2018), Vaughn se encontra justamente nessa quadra da vida, meio oprimido por todas as responsabilidades de ser pai, malgrado não tenha ideia sobre o prazer que essa nova condição pode lhe proporcionar. O personagem de Jack Lowden — protagonista do filme de Matt Palmer junto com Martin McCann, que interpreta Marcus — parece um tanto deslocado frente à importância do caminho pelo qual se decidiu, se é que decidiu alguma coisa. Por essas e outras, aceita sem tergiversar o convite de Marcus para uma caçada nas Terras Altas da Escócia, no noroeste do país, mesmo sem saber atirar e sequer demonstrar o mínimo gosto pela atividade. O enredo dá a entender que sua vontade de satisfazer o amigo, que não via há 15 anos, é o que de fato interessa a ele.

A chegada dos dois à cidadezinha escolhida por Marcus marca o início do segundo ato do filme. Retratando as situações-clichê em tramas como essa — os forasteiros com dinheiro para gastar à vontade (Marcus em melhor situação que Vaughn, que se diga), bem vestidos e aparentemente sofisticados, que entram no único bar da região e logo são abordados por mulheres bonitas e atiradas —, Palmer escapa da mesmice ao apresentar Logan, o líder do vilarejo, papel de Tony Curran, como um sujeito afável e sensato, que se interessa verdadeiramente em reerguer o lugar em que vive, ainda que não simpatize nada com a caça esportiva, e que talvez por isso seja tão gentil com os visitantes.

Os amigos usufruem o último fim de semana de solteiro de Vaughn, e Marcus sempre parece se divertir muito mais. Depois de uma noitada de bebedeira dos dois, além de drogas e sexo para Marcus, este desperta na manhã seguinte ávido por levar Vaughn para o campo a fim de verificar o que seus rifles vão lhes trazer. Ainda que não se preste a desempenhar a função de filme de argumento, para refletir, “Calibre” sugere nas entrelinhas interessantes pontos de vista do diretor acerca de assuntos como a livre venda de armas, alcoolismo, abuso de drogas, além dos perigos de uma amizade em que um dos lados tem muito mais peso que o outro e o deixa sempre em franca desvantagem, sem saída, raciocínio que vai permear a trama até o fim, quando o desfecho resolve a questão para Vaughn definitivamente — pelo menos no que diz respeito a Marcus. Inconscientemente, Vaughn parece rejeitar tudo o que o amigo lhe oferece, seu estilo de vida, seus hábitos, sua dependência, sua depravação, mas há alguma coisa em Marcus que o encanta, que o enfeitiça, que o idiotiza.

Mesmo com alguns indícios de que aquilo tem tudo para dar errado, a caçada começa. Obedecendo às instruções de Marcus, Vaughn é o primeiro a atirar e, efetivamente acerta alguma coisa. Na sequência, desconfiam de que a bala teve um destino que não deveria, o que se confirma quando ouvem um homem chamar pelo filho, Sammy. Vaughn chega ao cadáver antes, mas o pai de Sammy, irmão de Logan, os encontra, ao atirador e ao menino morto. Pensando que liquidaria a fatura, Marcus alveja o homem no peito. Agora não há mais capitulação possível: Vaughn e Marcus são dois homicidas frios, mormente depois do que resolvem fazer com os corpos, o que é o começo da ruína para a dupla. Algum tempo depois, Logan dá pela falta do irmão e do sobrinho, organiza uma busca munido de cães farejadores e chega ao lugar onde os dois foram enterrados. Marcus, enfim, é vencido pela força dos acontecimentos, e a frieza de sua personalidade doentia fraqueja: num laivo de humanidade, ele tem medo e se trai, fugindo dali e, por conseguinte, assumindo sua culpa. Vaughn o acompanha. Eles tentam se livrar da multidão furiosa que os persegue pelas estradas vicinais que margeiam o bosque, enquanto desviam dos tiros que chovem sobre os dois, mas um dos projéteis atinge o tanque do carro. Eles saem do automóvel e correm para dentro da mata, todavia são alcançados pelos cães.

“Calibre” se conduz para o encerramento perverso lembrando o argumento central do argentino “O Cidadão Ilustre” (2016), dirigido por Gastón Duprat e Mariano Cohn, que por sua vez baseia-se em obras máximas da filosofia, como o clássico “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860). No livro, Schopenhauer, um dos pensadores que se celebrizaram pelo pessimismo, ao lado do dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) e do também germânico Friedrich Nietzsche (1844-1900) — malgrado nunca tivesse passado por graves apuros de dinheiro e fosse reconhecido como grande intelectual que era, sorte que os outros dois não tiveram, ou de que só passaram a gozar à custa de muito empenho —, defendia a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. Ou seja, nunca ceder à tentação de desejar reviver momentos da vida já relegados a um passado distante, por mais felizes que pareçam, como o reencontro com um grande amigo. A vida muda. As pessoas mudam — ou se revelam. Não entender isso pode implicar em consequências, no mínimo, indesejáveis.