Monteiro Lobato criou a filósofa Emília

Monteiro Lobato criou a filósofa Emília

Gilberto Gil cantou que a boneca de pano e o sabugo de milho eram gente no Sítio do Pica-pau Amarelo. Pensavam para além dos humanos, naquele local que é um Brasil em miniatura, onde se sonha com o futuro baseado nos frutos da terra (plantas, minérios). Mais à superfície, está o microcosmo criado pelo antimoderno convicto Monteiro Lobato (1882-1948). Mas, como todo refratário à modernidade, ele mergulhava nos detalhes para pensar as coisas fora do seu tempo e do seu espaço geográfico.

A obra-prima de Lobato é a historinha ou novela “Memórias da Emília”, publicada em 1936. Trata-se de uma narrativa do tempo em que havia ficado para trás o crítico ácido do pessoal da Semana de 1922. Em dezembro de 1917, ele provocou uma polêmica banal e desnecessária (como são muitas polêmicas) para atacar a artista plástica Anita Malfatti, que fazia “arte anormal”, segundo o escritor. Foi um tiro na vanguarda que se gestava no Brasil do período, porém mostrou como pensava o autor paulista.

A escrita de Lobato desfez a fama de reacionário nas artes, sobretudo com criações como as memórias da boneca de pano. No século 21, porém, voltou a pecha do sujeito fora do lugar e todo errado, em vista dos termos inadequados que ele usou para se referir a personagens negros. Salvo engano, não se viu uma pisada na bola desse tipo em autores como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz ou Jorge Amado, todos contemporâneos do inventor das histórias do Sítio do Pica-pau Amarelo.  

“Memórias da Emília” tem o trunfo de antecipar a discussão da escrita autobiográfica. Lobato expôs com clareza e graça o tema da “ficção de si mesmo”, as invenções que as pessoas concebem para se representar. “Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta ideia do escrevedor”, diz a boneca Emília, obviamente uma versão brasileira do Pinóquio.

A personagem arrisca uma definição simples e filosófica da linguagem: “Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso”. Tudo o preâmbulo é feito para convencer Dona Benta a aceitar o projeto de escrita das memórias. Mas existe um problema prático: ela não tem a menor ideia de como escrever a própria história. Para resolver o entrave, ela obriga a Visconde de Sabugosa a ser o “ghost writer”, afinal ela tinha mais o que fazer na vida.

“Memórias! Pois então uma criatura que viveu tão pouco já tem coisas para contar num livro de memórias? Isso é para gente velha, já perto do fim”, ponderou o boneco que é um sabugo de milho culto. A resposta de Emília sintetiza a imagem da figura autoritária e perversa — sendo este último traço o que se acentua ao longo da história. “Faça o que eu mando e não discuta. Veja papel, pena e tinta”, ordena Emília, que ainda quis escolher o papel ideal para a redação do Visconde.

O resultado foi um desastre revelador. O “ghost writer” descreveu a “verdadeira” Emília, não a heroína que ela via no espelho, mas sim a personagem mentirosa, cheia de manias e, por princípio, incontrolável. “Emília é uma tirana sem coração. Não tem dó de nada. Quando Tia Nastácia vai matar um frango, todos correm de perto e tapam os ouvidos. Emília, não. Emília vai assistir. Dá opiniões, acha que o frango não ficou bem matado, manda que Tia Nastácia o mate novamente”, conta o Visconde.

O festival de “verdades” contraria Emília, cuja imagem idealizada de si desaparece na escrita do biógrafo. Ele tenta, na verdade, mostrar as ambivalências do caráter da boneca: “Emília é uma criaturinha incompreensível. Faz coisas de louca, e também faz coisas que espantam a gente de tão sensatas. Diz asneiras enormes, e também coisas tão sábias que Dona Benta fica a pensar. Tem saídas para tudo. Não se aperta, não se atrapalha. E em matéria de esperteza não existe outra no mundo”.

Ao ler o texto do Visconde, Emília evidentemente se irrita e surpreende o leitor: “O senhor me traiu. Escreveu aqui uma porção de coisas perversas e desagradáveis, com o fim de me desmoralizar perante o público. Mas, pensando bem, vejo que sou assim mesmo. Está certo”. Resultado: ela demite o biógrafo. “Pode ir embora, Visconde. Eu mesma quero acabar estas Memórias”, decide a boneca, que retoma o projeto original de autoelogio e ficcionalização de sua própria história.

Com uma história extremamente simples, Monteiro Lobato escreveu um tratado sobre a escrita autobiográfica e das biografias. Fez isso antes dos teóricos (Lejeune, Dosse) e das celebridades com seus livros memorialísticos que trazem a pitada de desgraças, mas que carregam, isso sim, nas tintas da “ficção de si mesmo”. Quando se deparar com um livro ou um filme que conta a história de uma pessoa, é sempre bom lembrar dos embates filosóficos de Emília com o Visconde sobre o ato de escrever.