Com nostalgia e lirismo, Carlos Marcelo escreveu um dos melhores livros de 2021

Com nostalgia e lirismo, Carlos Marcelo escreveu um dos melhores livros de 2021

“Os Planos”, escrito pelo jornalista Carlos Marcelo e lançado em 2021 pela Letramento, é um reencontro com tudo o que o Brasil, que como sua capital, poderia ter sido. E não foi.No princípio dos anos 2000, a madrugada de sexta-feira para sábado parecia uma Idade Média, uma noite de mil anos, pontuada por angústia e obscurantismo. Sentia, leitor voraz que sempre fui — de jornais e revistas, inclusive —, que tudo o que havia passado aprendendo nos bancos da escola de segunda a sexta não servia de coisa alguma, que a seiva da vida estava mesmo era nos veículos impressos, sobretudo aos fins de semana. Aos sábados, o “Correio Braziliense” publicava um suplemento cultural chamado“Pensar”. O nome simples, mas cheio das evidentes sugestões, me remetia a um mundo em que só o que de fato interessava ganhava as páginas de um jornal. Meu amor pela filosofia — iniciado ainda em tenra idade, aos nove anos, quando ganhei um concurso de redação sobre o tema —, era, finalmente, correspondido.

Vez ou outra, escrevia para o caderno, editado por Sérgio de Sá, um jornalista cujo nome tinha mais a ver com os de cantores de pagode que infestavam a televisão e o rádio naquela época (e desde então meu convívio com esses meios foi se tornando mais e mais errático, até nos divorciarmos sem remédio cerca de 10 anos atrás). Os textos de Carlos Marcelo no “Pensar” — esporádicos mais do que eu gostaria, dada a azáfama que é editar um jornal do porte do “Correio” — sempre me diziam alguma coisa. Suas crônicas, mais regulares, perdidas num pé de página em algum lugar inexato entre a editoria de Cidades e o Grita Geral, igualmente me despertavam o primor estético que pode haver no ofício da escrita. Chamavam a minha atenção sobretudo seus neologismos quilométricos, construções a exemplo de “gente-que-frequenta-os-corredores-dos-palácios”, uma ousadia estilística que eu aplaudia no silêncio das minhas leituras.

Os Planos, de Carlos Marcelo (Letramento, 286 páginas)

Vinte anos depois de minhas primeiras imersões na prosa jornalística de Carlos Marcelo, volto a ter o prazer de me deparar com sua narrativa, dessa vez na literatura. Em Os Planos, o autor conta a história de um quinteto de amigos que foram se tornando adultos junto com Brasília, nos anos 1970. Os tempos eram ainda mais duros do que hoje, muito mais, o que pode ter influenciado no que acabaram por se tornar. Duílio virara advogado bem-sucedido, suplente de um senador desonesto como tantos — mas com quem passa a estar mais intimamente ligado, uma vez que desposa sua filha; Rangel é um delegado com cacoetes totalitários quanto a resolver suas desavenças particulares; Hélio Pires, um pequeno comerciante que tenta em vão se manter longe da imundície entre o interesse público e o privado; assim como Tide, programador musical da Rádio Senado que, em alguma medida, tira proveito da influência de Duílio e Rangel. O elo feminino da turma é Diana, ex-mulher de Duílio e colega de trabalho de Tide.

Duílio, Rangel, Hélio Pires e Tide se envolveram num crime quando adolescentes e ainda hoje se sentem ameaçados pela mínima possibilidade de que tudo venha à tona, meio século depois. A inconsequência da juventude continua a reverberar entre eles transcorridos 50 anos, e eles se veem obrigados a reviver os tempos de bebedeira no Parque da Cidade e passeios despretensiosos ao longo da W3 Sul. O pai de Diana passa a ser o alvo a ser derrubado, e Carlos Marcelo faz alusões interessantes a empreitadas por completo inovadoras no combate à devassidão no trato com o patrimônio nacional, como a Operação Lava-Jato, que mobilizou a República, mas já foi providencialmente desmontada. Nunca esteve tão vívida a atmosfera do faroeste caboclo enunciado por Renato Russo (1960-1996), que é mencionado por alto na trama, como o “Renatinho da Cultura (Inglesa)”. 

Dividido em dois segmentos, O Plano e Outro Plano, o autor mergulha nas tantas ilusões perdidas na lembrança da geração Coca-Cola, que tinha o futuro nas mãos, não soube muito bem o que fazer com ele e, pior, em alguma medida introjetou a noção de vale-tudo que grassa em Pindorama. Na contracapa do romance, observam-se cinco meninos escalando A Justiça, escultura em granito em plena Praça dos Três Poderes, diante do Supremo Tribunal Federal (STF), o que diz muito do enredo. Captado nos anos 1970, quando se passa a história, o registro, de autoria do fotógrafo Luis Humberto (1934-2021), é a síntese visual do livro. Carlos Marcelo, que recebeu de Luis Humberto a cessão de uso da imagem, esclarece que foi uma coincidência e, em sendo mesmo, em algum lugar “Os Planos” já havia sido escrito, só precisava ser resgatado. A subversão, a inadequação social, o menoscabo da lei, o descrédito com as instituições: está tudo ali, margeado pela dose certa de doçura, de nostalgia, de lirismo.

A partir do segundo tomo, Outro Plano, ganha força a figura de Denizard, colunista político old school que se esmera em fazer jornalismo como se deve: apurar o faro, perseguir o fato, checar, rechecar. Auxiliado pela estagiária Djennifer, Denizard incorpora a relevância de que certo profissional de imprensa goza ainda hoje, mormente numa cidade famosa pelo cruzamento habitual entre poderosos e a plebe rude e a massa ignara. Todo mundo em Brasília tem um amigo, ou o amigo de um amigo, que conhece um senador, um deputado, um assessor legislativo que seja. A facilidade, ilusória, de se dar bem em Brasília talvez seja um dos pontos que restam mais nebulosos em “Os Planos”, ainda que Carlos Marcelo ressalte com Hélio Pires e, em especial, Tide, a frustração de gente que poderia ter ido longe, mas que se deixa tomar, de alguma maneira incorpórea — e maldita —, à terra vermelha do Planalto Central, e vai ficando, e vai secando, e vai morrendo.

Carlos Marcelo Carvalho foi, entre muitas, uma referência do jornalista que eu sempre quis ser. Ao trocar João Pessoa em 1985, aos 15 anos, por Brasília, Carlos Marcelo perseguia seus sonhos com o afinco que o nordestino tem para quase tudo. Em Brasília, também eu me encarnicei a meus sonhos o quanto pude, até entender que a cidade era o último lugar em que teria alguma chance de realizar o sonho mais banal que tivesse. Quando ainda era como Duílio, Rangel, e particularmente, Hélio Pires e Tide na década de 1970, eu, no começo dos 2000, também era ingênuo. Foi muito bom reencontrar a Capital da Esperança na pena irretocável do autor de “Os Planos”, passados quase três longos anos da nossa despedida meio traumática, mas de minha parte hoje sem rancores. A vida tinha outros planos para mim, e Brasília não se incluía neles. Felizmente.