O filme da Netflix que tem 100% de avaliações positivas

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Levou muito tempo até que deficientes, os hoje chamados PCD (pessoas com deficiência) pudessem se sentir indivíduos plenos de todos os direitos, mesmo cumprindo, a exemplo de qualquer outro cidadão, suas obrigações cívico-legais. A comunidade de portadores de todos os gêneros de licitações só passou a contar com alguma visibilidade prática depois de 1999, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) oficializou uma agenda que remete à luta desse grupo por fazer parte de uma sociedade que os excluía.

Enquanto esse dia luminoso não raiava no horizonte de milhões de deficientes mundo afora, o cotidiano de pleitos e reivindicações tomava cada vez mais as cabeças dos moradores das grandes cidades e suas ruas, num movimento orgânico de gente que se sabia digna da atenção do poder público, tinha toda a disposição para brigar pelo que considerava justo, mas simplesmente não fazia ideia de por onde poderia começar.

O documentário “Crip Camp: Revolução pela Inclusão” resume no título a intenção da grande parcela das pessoas que, por uma razão muito específica — e muito cômoda para o outro lado — via a vida acontecer de suas janelas, sem nunca ser chamado a integrar aquele movimento todo. Uma vez que se deram conta de que talvez ficassem mesmo completamente alijados do corpo social, os deficientes deram a cara à tapa. O acampamento Jened, fundado em 1951 e que, bravamente, foi capaz de estender suas atividades até o verão de 1977, se constituía, à primeira vista, em mais um lugar que recebia rapazes e moças comuns, ávidos por experimentar numa época em que a liberdade e o desejo por autoconhecimento ditavam hábitos e condutas. E era mesmo: a decisão quase institucional de tratar seus frequentadores como gente que obedece a todos os padrões foi o que fez a diferença quanto a despertar nesse público a força que sempre tivera, mas que por motivos bastante pontuais restava latente. “Crip Camp”, de Nicole Newnham e James Lebrecht, ex-membro de Jened e portador de espinha bífida, uma malformação congênita na medula espinhal —, faz um retrospecto até a fundação do campo, em 1951, e põe uma lente de aumento sobre seus integrantes, expondo em detalhes as envolventes histórias que muitos pareciam ter esperado a vida inteira para dividir com alguém. Sempre tomando a figura dos campistas por fio a conduzir a narrativa, o roteiro avança para os anos 1960 e segue até o século 21, manifestando seu papel de registro histórico de um conjunto de mudanças rumo à ideia de remodelação do mundo apregoada e ansiada por aquelas pessoas. Ou, ao menos, de uma parte muito significativa dele.

À medida que “Crip Camp” se desenrola, torna-se mais nítido o interesse de se evitar uma romantização da vida de quem tem limitações em maior ou menor grau e concentrar esforços em transmitir a noção de que o caminho até aqui foi longo, muitos se cansaram, muitos se perderam, e o jogo ainda não está jogado. Dessa forma, o documentário presta um grande serviço ao espectador — com deficiência ou não — ao se eximir da facilidade de apresentar deficientes como desgraçados que mereceram suas conquistas por uma providencial comiseração dos demais e escapar de uma outra armadilha: a de enxergá-los como indivíduos amargurados pela própria natureza de nunca poderem se dar por satisfeitos. “Crip Camp”, acertadamente, não se revela um álbum de fotografias repleto de lembranças de um suposto tempo feliz que não volta mais; “Crip Camp” é a história viva, se movendo, se fazendo diante de nossos olhos. E a história não tem fim.

Decerto, quem melhor personifica a concepção de inconformidade com o estabelecido quanto à causa dos deficientes e tudo o que sua história encerra é Judith Heumann, oradora de raro talento e líder nata. Desde sempre engajada acerca das demandas desse estrato tão particular — e tão ignorado, e tão malvisto —, aos 24 anos, Judy fora uma das primeiras a ligar-se ao Jened, em 1971. Valendo-se de sua habilidade em circular por ambientes saborosamente caóticos como o acampamento e, com toda a classe, tomar assento em audiências com políticos e outras autoridades, a ativista, hemiplégica ainda bebê devido à poliomielite, se tornou uma das figuras centrais em todo o mundo quando se quer falar a sério a respeito da incorporação de pessoas com deficiência, seja no mercado de trabalho, seja no convívio com outras pessoas, seja na sua própria família. Judy foi a responsável pela Ocupação 504, movimento que reuniu centena e meia de deficientes ao longo de 25 dias nas instalações do Departamento de Saúde de São Francisco, até que — primeiro o Parlamento local, depois o Congresso americano — votasse leis que assegurassem as condições necessárias para o ingresso de pessoas fisicamente limitadas a qualquer espaço, público ou privado, a chamada acessibilidade. Conselheira Internacional para os Direitos das Pessoas com Deficiência no Departamento de Estado dos Estados Unidos durante o governo Barack Obama (2008-2012), em “Crip Camp” Judith Heumann serviu de elo entre o excelente argumento que se impunha e a produtora que acabou por viabilizá-lo. A Higher Ground, cujos donos são justamente Obama e a mulher, Michelle, se encantou pelo projeto de imediato, e o que se poderia esperar disso não era pouco, visto que “Indústria Americana”, sobre a incompatibilidade de um bilionário chinês moderno e seus novos velhos funcionários americanos — também da lavra da Higher Ground —, levara o Oscar de Melhor Documentário em 2020. Faltou pouco para “Crip Camp — Revolução pela Inclusão” ter o mesmo destino de “Indústria Americana” junto à Academia, o que certifica a relevância inegável de seu tema central.

É emocionante ver que o mundo, por besta que soe, já foi muito mais injusto, muito mais austero, muito mais perverso, ainda que restem tantas revoluções por se completarem. É um privilégio se estar vivo e a todo momento deparar com as conquistas de pessoas que se unem com a intenção exclusiva de viver como todo mundo vive. Assim deveria caminhar a humanidade.