A melhor série lançada pela Netflix em 2021

A melhor série lançada pela Netflix em 2021

Como o homem tem o condão de subverter tudo, em pouco mais de 20 anos, o que parecia ser uma promessa quanto a encurtar distâncias acabou se revelando uma ferramenta capaz de transformar o mais ordinário dos indivíduos numa ameaça. Agatha Christie (1890-1976) certamente seria a primeira a tirar excelente proveito da controversa — e perigosa — relação a envolver o homem e a máquina e transformar os tantos textos jornalísticos acerca dos mais diversos crimes cibernéticos, extorsões, invasão de privacidade, estelionatos virtuais, em relatos primorosos, cada um digno de figurar entre os muitos casos solucionados por Hercule Poirot, o detetive evasivo e obstinado que protagonizava suas histórias. Talvez só ele mesmo para entender, por meio da pena arguta da Rainha do Crime, o que pode ir na cabeça da legião crescente de ingênuos que se deixam ludibriar por tipos que não hesitam um instante em lançar um fio de charme e seduzir um incauto, a fim de conseguir deles o que bem quiserem. E, por óbvio, traçar o perfil definitivo dos criminosos da rede — essa uma tarefa assaz complexa, talvez até para o investigador mais célebre da literatura.

As melhores novelas policiais já escritas observam a regra de ouro de nunca deixar o leitor de fora da brincadeira, incutindo no público a vontade, e mais, a necessidade, a angústia por saber quem está por trás de um delito cuja solução se arrasta no tempo inexplicavelmente, sem possibilidade nítida de desfecho. Hollywood costumava fazer isso à perfeição, mas com o advento da internet, revelou-se, enfim, um lado da humanidade que restou oculto por milhões de anos, desde seu aparecimento sobre a face da Terra: a intolerância ao pensamento e à reflexão. Todos fomos tomados de assalto pela premência de liquidar qualquer assunto da forma mais ligeira e banal que pudermos, uma vez que a vida, que nunca parou, agora roda num carrossel de fogo, desgovernado e eterno, até que alguém de uma outra dimensão o venha desligar.

O método de Agatha Christie fez escola no cinema. Diretores-fetiche do suspense, gênero que melhor sintetiza a mistura de sedução, perigo e crime, a exemplo de Alfred Hitchcock (1899-1980) e Brian de Palma seguiram as recomendações da madrinha e nunca se valeram de uma pretensa superioridade para empurrar pela goela da audiência abaixo nenhum laivo de arrogância vaidosa e fazer todos acreditarem que estavam certos quando, na verdade, poderiam ter errado ao conduzir a narrativa a um resultado pouco verossímil ou mesmo farsesco. À medida que a tecnologia tomou mesmo conta do mundo, o cinema foi um dos primeiros a experimentar as tantas metamorfoses do universo digital, que levaram enredos a se desdobrarem não em filmes, mas em séries, em que o roteiro tem tudo para ser destrinchado com mais vagar e, assim, se eliminar qualquer chance de ponta solta.

Com um homicídio divulgado pela internet prestes a se consumar, “Clickbait”, a recém-lançada produção da Netflix, assume papel de registro do espírito de um tempo. Época em que tudo acontece à velocidade de um acesso, a modalidade delituosa igualmente obedece tal padrão e o possível criminoso é humilhado, cai vítima de toda a sorte de enxovalhos, e clama — inutilmente, claro — para que seu vídeo não seja assistido por mais ninguém, a fim de poupar sua vida, apequenada à condição de mero espetáculo, afinal, o show tem de continuar sempre.

Vivido por Adrien Grenier, Nick Brewer, fisioterapeuta de atletas amadores, tido por pai amoroso e marido exemplar, se vê enredado no que parece ser uma acusação de abuso sexual e, em vez de parar no banco dos réus, é raptado e coagido a segurar um cartaz com a confissão de suas supostas delinquências. Na gravação, Brewer adverte o público de que o vídeo não pode ser assistido mais de cinco milhões de vezes, do contrário, será executado. Cada um dos oito episódios (“A Irmã”, “O Investigador”, “A Esposa”, “A Amante”, “O Repórter”, “O Irmão”, “O Filho” e “A Resposta”), cuja direção se alterna entre Brad Anderson e Emma Freeman, traz a visão de um personagem específico acerca do sequestro dele.

O detetive que trabalha na ocorrência mantém a irmã de Brewer, Pia, de Zoe Kazan, a par das novidades do caso. Em se arvorando em parte da equipe policial destinada a averiguar o crime, ao saber dos próximos passos da operação, Pia também mexe seus pauzinhos, embora não consiga avançar na empreitada de descobrir o paradeiro do irmão — e mesmo se atrapalhe um pouco nisso. Pia seria uma agente dupla e agiria em favor dos sequestradores de Brewer? Ela teria motivos para se livrar dele e vê-lo morto? Por que a mulher de Brewer, Sophie, papel de Betty Gabriel, mesmo se aliando a Pia depois de anos de desavenças, não se faz ouvir? Ele seria uma vítima do ódio silencioso das duas? Quiçá uma nova temporada esclareça essas suspeitas.

O jornalismo sensacionalista que, não por acaso, explodiu com o incremento da internet, é alvo de crítica pertinente em “Clickbait” na pessoa do repórter que cobre o sumiço do fisioterapeuta e, aspirando por uma súbita guinada na carreira, abastece o público de informações tão grandiloquentes como inócuas, carregando nas tintas do drama mais rasteiro em suas manchetes. Crimes, eventos insólitos e jornalistas antiéticos, sem o menor escrúpulo quanto a conseguir uma boa matéria e espremer de uma história da qual sabem quase o mesmo que o cidadão comum todo o sumo de vulgaridade e escândalo só para, aproveitando o mote da série, caçar cliques, é um argumento vastamente explorado no cinema, tornado mais evidente a partir de “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), dirigido por Billy Wilder (1906-2002). Lamentavelmente, esse aspecto de “Clickbait” acaba negligenciado, quando poderia render um episódio mais extenso e uma abordagem mais detida a respeito da promiscuidade entre internet, crimes virtuais e jornalismo, sobretudo o digital. Lapso desculpável, dada a importância da premissa central do trabalho dos roteiristas Christian White e Tony Ayres.

Longe de ter arrebatado a satisfação geral, o desfecho de “Clickbait” gerou uma tola polêmica (e o que não gera?) quanto a identidade do assassino de Nick Brewer, o que prova que a história pode mesmo se sustentar por si só. Na maior parte das vezes, o perigo se apresenta sob o disfarce mais insuspeito.