A obra-prima, de amores mortos e redivivos, que criou uma geração de cinéfilos

A obra-prima, de amores mortos e redivivos, que criou uma geração de cinéfilos

Ainda tentando se reerguer 40 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em 1984, a Europa — e, mais precisamente, a Alemanha — se via diante de uma encruzilhada. A família era uma instituição indigna do menor crédito, devido à vitória de visões de mundo que não suportavam a ideia de que duas pessoas quisessem de fato — em meio ao caos da Guerra Fria (1962-1979), à revolução contracultural que florescera ao longo dos anos 1960, que ainda reverberava e cujo mandamento primeiro remetia justamente à liberdade tomando-se o sexo inconsequente e fortuito por base, às insanidades políticas que se sucediam aos borbotões no Velho Continente, refém da quimera comunista, que só começaria a ser desmistificada cinco anos depois, com a queda do Muro de Berlim, em 1989 — colocar de lado suas tantas diferenças, concentrar-se no que passara a movê-la numa só direção e se casar. Só por causa de um sentimento tão burguês quanto o amor.

Hollywood, como sempre conservadora, direitona, certinha, careta, reacionária, começou a mexer seus pauzinhos a fim de reverter o quadro. Filmes despretensiosos — e mesmo infantis — a exemplo dos que compõem as franquias “Esqueceram de Mim”, lançada em 1990, ícone de uma geração, cuja história do garoto que fica para trás enquanto a família toda sai de férias, e “Beethoven”, de 1992, sobre o cachorro que enlouquece todo um clã com suas diabruras, mas que torna-se também um membro amado do grupo, tentaram segurar as pontas do amargor do americano tranquilo — e do resto da humanidade, mesmo já em ruínas o Muro e falido o comunismo. Mas a realidade sempre se impõe.

O que seria do cinema sem aqueles seus tipos gauche, tão malditos como adoráveis? Retrato mais fiel do gênero humano, os losers, os fracassados, alvo da execração pública da América do green power, o poder das verdinhas, tem um lugar cativo junto ao espectador. Travis Henderson, o personagem do lendário Harry Dean Stanton (1926-2017), conduz “Paris, Texas”, da maneira inversamente proporcional como leva sua vida. Para quem nunca teve qualquer iniciação ao filme de Wim Wenders, apresentado ao público em 1984, não existe aqui nenhuma alusão a possíveis conexões entre a Cidade Luz e o meio-oeste americano, muito pelo contrário. Provavelmente não há no mundo dois lugares mais díspares, mais opostos entre si, mais antagônicos. Essa Paris é uma homônima da capital francesa no coração arenoso dos Estados Unidos, onde Travis se programara para ter uma velhice sossegada, longe das perturbações da cidade grande, sem luxo, mas tampouco sem precisar contar as moedas. Não estaria sozinho, claro: tudo só faria sentido se sua namorada, Jane, topasse a parada e levasse consigo Hunter, o filho que tiveram. O relacionamento dos dois fora marcado pela inconstância, pela informalidade, pelo descompromisso e, por óbvio, malogrou, e muito desse insucesso se deve ao fato de Travis estar sempre desconfiando da companheira, inseguro por ser 35 anos mais velho. Jane sumira no mundo, Travis sumira no mundo, e coube a Walt, irmão do protagonista, criar Hunter. Adeus às ilusões.

O alemão Wim Wenders imprime em “Paris, Texas” seu ponto de vista original, novo e categoricamente preciso acerca de um território específico da América, tão ligado à história do país e, ao mesmo tempo, tão alheio, tão inadequado à imagem que dele faz o resto da humanidade. O velho oeste de Wenders é mostrado em toda a sua verossimilhança, em toda a sua crueza, que se depreendem da decisão por optar por planos o mais abertos possível. O sertão ianque como o entende o diretor é, por evidente, árido, arcaico, mas não vive só de areia e atraso. É todo rasgado por infinitas highways, pontuado por prédios cujo terraço não se alcança a olho nu e colorido pelas salas de peep-show, justamente onde Travis reencontra Jane, porque é assim que ela ganha a vida. Uma coisa puxa a outra, e a amplitude dos takes de Wenders logo nos suscita a mensagem de solidão, da tristeza atávica que parasita o personagem central.

Em cruzando as trajetórias de Travis e Jane num lugar escuro, abafado, até meio molesto, insalubre, separados por um vidro de forma que Travis vê, mas não é enxergado, Wim Wenders sugere que uma volta ao passado aqui já não é possível — e quase nunca é mesmo. A vontade de conferir à sua vida algum significado terá de partir de outro lugar. Europeus, e, em particular, os alemães, conhecem como ninguém o valor da liberdade, que por paradoxal que possa soar, nem sempre liberta o homem, cada vez mais oprimido, justamente pelo excesso de alternativas. O final de “Paris, Texas”, que celebra a reconfiguração de ao menos parte da família que se fragmentara, se apresenta profético quanto ao que o mundo vive passados quase quatro décadas. Nunca fomos tão Travis Henderson.