O melhor filme de romance do século 21 está no catálogo da Netflix

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Nick Cassavetes está para Marcel Proust (1871-1922) como “Diário de uma Paixão” está para “Em Busca do Tempo Perdido”, cuja primeira publicação veio à luz em 1913. No romance, Proust devota 13 anos de sua vida a dissecar as impressões de Charles Swann sobre a vida, o amor, os encontros e desencontros ao longo que aquela apresenta para este. O literato francês, embora um dos mais talentosos e que melhor dominava a técnica de escrever, continua praticamente um anônimo junto ao distinto público. Seus relatos sobre as desilusões amorosas de Swann, sua leviandade, a maneira entre cínica e mesmo torpe com que conduz sua vida, são escarafunchadas à guisa de passagens melífluas, quase insuportáveis na contemporaneidade de textos com no máximo duzentos caracteres, em que o protagonista alude a lugares específicos, olores particulares, o sabor das madeleines que embebia no chá enquanto o tempo corria para o restante da humanidade.

A infância decerto é a era mais feliz da vida do homem. É lá que começamos a nos tornar quem somos, é lá que começamos a saber quão difícil pode ser a vida em adultos, o quão complexo será lidar com as muitas questões da existência, a mais relevante delas, sem dúvida, o amor. A memória pode ser tão traiçoeira quanto o amor, daí, talvez, a necessidade de se registrar num diário o que sentimos, que pensamentos nos assaltavam em determinada circunstância que julgamos crucial em nossa vida, que reações esboçamos, o que de fato veio a suceder, como se com tal medida nos precavêssemos de prováveis — e possíveis — trapaças do destino.

A partir do argumento um tanto batido do sujeito pobre e sem traquejo social que se interessa pela moça fina e cheia da nota e faz de tudo para ter uma chance com ela — o que raspa na obsessão —, Nick Cassavetes obtém um resultado primoroso. Determinista e pueril, a ideia do filho de peixe que é peixe também, ou do fruto nunca cair longe da árvore, se aplica aqui. Nick, como se depreende do sobrenome, provém de uma das linhagens mais nobres do cinema. O pai, John Cassavetes (1929-1989), fora responsável por, entre outros filmes quintessenciais da sétima arte, o hermético — e lindo — “Uma Mulher sob Influência”, lançado em 1974, onde a mãe, Gena Rowlands, bota para fora toda a loucura que poderia ter armazenado ao longo de uma vida (e um casamento) e constrói uma Mabel que inspira pena e ternura, mas generosa o bastante para lhe conferir o Oscar de Melhor Atriz daquele ano. Mas vamos ao “Diário”, em cujo elenco, não por acaso, figura Mabel, digo, Gena.

O filme tem calcanhares de Aquiles. A já apontada possível psicopatologia do personagem principal, Noah, passa em branco, mesmo depois de outras tantas evidências que ratificam seu desajuste social, conforme se assiste na sequência da roda-gigante. Beleza. Certamente essa é a pior de todas as fraquezas do enredo, que centra fogo na mocinha, Allison, a Allie: ela é a frívola, a inconstante, a falta de um parafuso, haja vista que vai acabar num asilo, sozinha, se digladiando com uma doença degenerativa que lhe carcome o cérebro — e a dignidade —, o mal de Alzheimer, dependendo da generosidade de estranhos, ou nem tanto, como logo se denota. Há alguns tantos diálogos meio capengas, algumas situações que pendem para o artificial, mas Nick tira leite de pedra do romance pegajoso do xará Nicholas Sparks.

Todo mundo sabe — e estudiosos do sistema nervoso humano ainda mais — que amor é química. Apesar dos arranca-rabos homéricos entre Ryan Gosling e Rachel McAdams nos bastidores, em cena o profissionalismo levou a melhor. O pudor é a mais afrodisíaca das virtudes, como ensina Nelson Rodrigues (1912-1980), e as cenas de sexo entre Noah e Allie, apesar de meramente sugestivas são memoráveis — e só por isso “Diário” já vale as mais de duas horas de duração.

A ação se dá em meio a muitas analepses, o bom e velho flashback, por meio dos quais Noah vai e vem no tempo, dos anos 1940, quando se declara daquele jeito estabanado, à primeira década do século 21, os dois já idosos. Não é preciso QI acima de 50 para saber que os velhos no asilo são Noah e Allie, mas quem não capta a mensagem de pronto não merece nenhum apelido infame. O que interessa é a forma como a narrativa se desdobra e, principalmente, em que contexto. Os pais de Allie poderiam ser tomados por preconceituosos, conservadores, fascistas, nazistas, mas num mundo de há oitenta anos, só queriam o melhor para a filha, uma pobre ingênua. Noah talvez fosse só um doidinho manso, o sapo que se encanta pela lua, mas outrossim é determinado, autossuficiente, o self-made man que o americano tranquilo adora exaltar. Como se vê, “Diário” nunca é preto ou branco, mas, ao contrário, é todo pontuado por nuances e tintas fortes, como fica claro já na cena inicial, que retrata um céu banhado de vermelho pelo pôr-do-sol de chorar, mérito da fotografia de Robert Fraisse.

Com “O Diário de Uma Paixão”, Nick Cassavetes consegue um “Em Busca do Tempo Perdido” para chamar de seu. Cinema também pode ser milagre.