O bluesman do fim dos tempos

O bluesman do fim dos tempos

O filme “20.000 Dias na Terra”, de Iain Forsyth e Jane Pollard, é um dos mais criativos e interessantes a tratar do universo do rock. O documentário pode ser visto na plataforma do festival In-Edit Brasil. A câmera acompanha o momento que antecede o aniversário de 55 anos do cantor e escritor australiano Nick Cave, em 2012.

Ele encarna o último bluesman, vestido de preto como fazia Johnny Cash. As tragédias também fazem parte de sua vida. O compositor que desce aos infernos e sofrimentos, o sujeito solitário, que faz o pacto demoníaco da criação musical. Nick Cave tem obsessão com a figura de Elvis Presley e Robert Johnson.

Em seu segundo disco (“The First Born is Dead”, de 1985), está a canção “Tupelo”, nome da cidade onde nasceu o rei do rock. A música retoma o nascimento de Elvis, que teve um irmão gêmeo univitelino e natimorto. Parece que Nick Cave se imagina no lugar dessa criança nascida morta e que desapareceu da história.

Nick veio do interior da Austrália, de uma pequena cidade que ele lembrou na forma de paraíso em “20.000 Dias na Terra”. Mas, ao se tornar adulto, sua vida mergulha no roteiro infernal de drogas e criação artística. As primeiras experiências na música foram com as bandas antológicas Boys Next Door e Birthday Party, carregadas na energia do punk.

O documentário é construído a partir de cenas caseiras de Nick Cave em Brighton, na Inglaterra. Sua voz grave narra os mais ricos pensamentos já ditos por um roqueiro, quase em ritmo de fluxo de consciência. A casa tem as paredes lotadas de livros, e uma máquina de escrever é o objeto onipresente na vida do compositor.

Durante as filmagens, ele está gravando o belíssimo álbum “Push The Sky Away”, que seria lançado em 2013 com sua banda Bad Seeds. O tempo todo vemos a figura do guitarrista Warren Ellis, outro bluesman de tempos apocalíticos, quase a imagem calma de profeta que explode em sons distorcidos e melodias.

Os diretores do filme escolheram duas formas narrativas extraordinárias, para aproveitar a veia poética de Nick Cave. A primeira é a filmagem da sessão de terapia na qual o compositor conta ao seu psicólogo os medos e as histórias de infância. São momentos de uma riqueza que se situa entre a ficção e a realidade.

O segundo achado são as cenas de Nick dirigindo pelas ruas de Brighton. De repente, como se fossem alucinações, aparecem no banco do passageiro pessoas fundamentais em sua vida. A conversa “imaginária” com a esposa Susie Bick no carro traz memórias e uma profundidade impressionante.

Para aficionados do rock, porém, nada supera o trecho em que surge no carro o “fantasma” de Blixa Bargeld, líder do grupo Einstürzende Neubauten e que foi um dos Bad Seeds por duas décadas. Um diálogo entre Nick e Blixa já mereceria um filme inteiro, porque são duas figuras donas de criatividade sem limites.  

Os Bad Seeds, na fase Blixa, aparecem numa cena fundamental do filme “Asas do Desejo” (1987), de Wim Wenders. Foi o período que Nick viveu em Berlim. Ele voltou a colaborar com o diretor alemão em “Os Belos Dias em Aranjuez” (2016). Neste filme, Cave toca ao piano sua obra prima “Into my arms”.

A melancolia sempre foi a marca de Nick Cave – certamente por conta da semelhança com as canções dele com as do canadense Leonard Cohen (personagem do documentário excepcional Marianne e Leonard: Palavras de Amor, lançado recentemente na Netflix). Nos últimos anos, a atmosfera sombria de suas músicas ganhou intensidade.

 Em “20.000 Dias na Terra”, dá calafrios ver Nick conversando com seus filhos gêmeos. Isso porque, em 2015, o filho Arthur morreu ao cair de um penhasco em Brighton. O cantor tem dois outros filhos, sendo um deles brasileiro. O cantor se casou com uma brasileira e chegou a morar em São Paulo no começo dos anos 1990.

“Dois dias depois que nosso filho morreu, Susie e eu fomos para o penhasco onde ele caiu”, contou à revista “Rolling Stone”. “Quando Arthur era criança, ele fala de joaninhas e besouros. Ele amava, desenhava e se identificava com eles. Ficava conversando. Quando nos sentamos lá, uma joaninha pousou na mão de Susie. Nós dois vimos, mas não dissemos nada, porque, embora reconhecêssemos significado disso, não estávamos dispostos ignorar a tragédia com um pensamento mágico.”