A Festa do Bode, de Vargas Llosa: um mergulho no coração dos ditadores

A Festa do Bode, de Vargas Llosa: um mergulho no coração dos ditadores

Uma mulher de 49 anos de idade retorna à sua cidade natal, Santo Domingos de Guzmán, depois de três décadas e meia morando em Nova York. Seu nome é Urania Cabral. Não sabemos o que lhe aconteceu, mas é amargurada e tudo na cidade revisitada faz com só se lembre de duas pessoas: o pai, ex-senador Agustín Cabral (de quem vai ao encontro) e Rafael Leónidas Trujillo Molina, ditador da República Dominicana quando Urania ainda era adolescente. Em torno desses fatos capitais se desenvolve o primeiro capítulo de “A Festa do Bode” (2000), romance do escritor peruano Mario Vargas Llosa (traduzido por Paulina Wacht e Ari Roitman para a Companhia das Letras).

O segundo capítulo não tem quase nenhuma relação com o primeiro. Intercala-se ao de Urania e a uma terceira história, na sequência, sobre a emboscada para assassinar Trujillo: eis como é estruturado o romance. Nessa segunda história o protagonista é o próprio ditador caribenho (que existiu, de fato), iniciando mais um dia de trabalho. Parte do enredo é apresentada, aqui, por meio de suas lembranças: inclui as relações do ditador com os Estados Unidos, a campanha da Igreja Católica contra seu regime — o ano é 1961 —, os crimes por ele cometidos, a família Trujillo e inclui, também, Urania Cabral: a “garotinha insossa” de uma “noite maldita”. Estamos na manhã da noite seguinte ao encontro que tiveram, pouco antes do almoço que o ditador oferecerá a Simon Gittleman, o marine norte-americano responsável por sua formação militar, na juventude. O primeiro a despachar nessa manhã com Trujillo é o chefe do Serviço de Inteligência Militar, SIM, coronel Johnny Abbes García.

A Festa do Bode, de Mario Vargas Llosa (Tradução Paulina Wacht e Ari Roitman, Alfaguara, páginas 456)

Passamos ao capítulo três, onde quatro amigos — Salvador Estrella Sedhalá, Amadito Guerrero, Antonio Imbert e Antonio de la Maza — aguardam numa estrada noturna para assassinar o ditador, com o apoio dos Estados Unidos. Começamos a entender quem são essas pessoas e quais as motivações por trás do crime, algumas políticas, outras pessoais. O primeiro desses personagens que nos é apresentado é o ex-ajudante de ordens Amado García Guerrero. O Serviço de Inteligência descobriu que a moça com quem pretende se casar é irmã de um conspirador. Trujillo, em pessoa, orienta o auxiliar a esquecê-la. Mesmo contrariado, Amadito obedece e é promovido a tenente. Como prova final de sua lealdade ao ditador, Abbes García cobra-lhe o assassinato de um preso político, e assim ocorre. O próprio Abbes lhe contará em seguida, num bordel, que Amadito acabara de matar e jogar aos tubarões o irmão de sua ex-noiva.

“A Festa do Bode” é o desdobramento alternado desses três capítulos, até o XXIV. Podíamos fazer a sinopse de cada um deles ou apenas centrar nossa atenção no drama de Urania, qual seja: para recuperar seu prestígio após cair em desgraça no regime, o ex-senador Agustín Cabral aceita oferecer a própria filha, então com 14 anos, ao ditador Rafael Leónidas Trujillo Molina. A “festa” do Bode é a desgraça perpétua de Urania Cabral, um imenso e dolorido desabafo contra um estupro (do qual, parece, deveria ficar honrada!). Por essa razão, seu pai é o mais vil e covarde de todos os homens, em um livro que é a mais degradante história que alguém poderia conceber. 

Vargas Llosa funde biografia e ficção, talvez sua principal qualidade literária. Trata-se de um escritor muito diferente de outros grandes romancistas latino-americanos (Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier e Miguel Ángel Asturias), expoentes do realismo mágico ou fantástico. Aqui não há nada de fantástico, apenas a realidade de todos os dias. Em um mundo ininteligível como o atual, onde tudo é “narrativa” e não se sabe mais o que é verdade e o que é fake, o gênio de Llosa adquire um brilho singular. Jornalista de formação, seu estilo intercala passado e presente fazendo uso de flashbacks, sem renunciar à simples reportagem e história factual. O capítulo XXII, em particular — onde Llosa expõe o maquiavelismo de Joaquín Balaguer para assumir a presidência — é um exemplo dessa técnica, levada a extremos quase alucinatórios em “Conversa no Catedral”, romance mais festejado do escritor, prêmio Nobel de Literatura de 2010.

Urania Cabral e Rafael Trujillo estão no centro de “A Festa do Bode”, livro que mostra como aquela realidade de todos os dias pode ser tão desconcertante quanto a realidade fantástica. Regimes ditatoriais facilitam essa similaridade porque neles as pessoas se acostumam aos excessos e até passam a defendê-los, independente do mal que possam causar a terceiros e a si mesmos. Lord Acton, historiador inglês, disse que “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Vamos tentar entender essa frase no contexto dramático de “A Festa do Bode”.

Rafael Leónidas Trujillo Mollina governou a República Dominicana de 1930 a 1961, quando foi assassinado pelo grupo de Antonio de la Maza. A fusão operada por Vargas Llosa entre biografia e ficção é tão sutil que essa fronteira se evapora, no retrato que faz do ditador: resta apenas um terceiro elemento, maníaco obcecado pela pontualidade e a limpeza, vaidoso ao extremo e, sobretudo, dono de um olhar intimidador. Personagem demoníaco, Trujillo é o senhor absoluto de um pequeno cosmo. Conhecido ironicamente como “O Benfeitor”, possuía outros apodos, entre os quais “Pai da Pátria Nova”, associação que ditadores, demagogos e líderes populistas em geral adoram fazer. É que, em geral, consideram-se progenitores, força primária de onde deriva uma porção qualquer do Universo: no caso, o reino mitológico de Quisquéya, no Caribe. Nenhuma autoridade humana e legal sobrepuja o poder de Trujillo; megalomaníaco, comporta-se como um semideus, senhor da vida e da morte de seus súditos. Mas a explicação para isso é menos mística do que parece: tem fundamentos econômicos. A República Dominicana tornou-se uma espécie de S.A. nas mãos de (e para) Rafael Trujillo, responsável sozinho por 60% dos postos de trabalho do país. Com isso, o ditador passou a sustentar mais da metade das famílias dominicanas e, por consequência, a controlar economicamente seus auxiliares. Todos dependiam dele para subsistir, desde os conspiradores, ligados de alguma forma a esses negócios, até os aliados mais íntimos.

Conquanto Trujillo e Urania sejam, então, os atores principais deste palco, vamos destacar dois personagens que dependiam economicamente de Trujillo: Agustín Cabral e o general José René Román, chefe do exército dominicano. Este é personagem histórico, enquanto Agustín e sua filha são criações ficcionais de Vargas Llosa. Talvez mais interessante do que Román, e certamente mais do que Agustín, é Johnny Abbes García, definido como “sádico demente” de “inteligência luciferiana” por Joaquín Balaguer. Balaguer, por sua vez, é o presidente fantoche, outra figura maravilhosa: intelectual discretíssimo, revela-se no fim notável psicólogo na guerra de posições, que lhe assegura o poder após o magnicídio de Trujillo.

Mario Vargas Llosa: um mergulho em um dos momentos mais dramáticos da história recente da América Latina I Fotos: Petr Bonek e ToskanaINC

Toda a importância do general José René Román e do ex-senador Agustín Cabral consiste justamente no fato de serem coadjuvantes: não passam de esbirros, hipnotizados pela figura absorvente do “Chefe”. Apesar disso, o general Pupo Román (para os íntimos) é figura decisiva em “A Festa do Bode”.  “Soldadinho de merda” é a última recriminação que sofre de Trujillo, antes que este seja fuzilado após deixar o general no meio de uma estrada lamacenta, à noite, por causa de um escoadouro arrebentado. A cena ocorre no capítulo XVIII, onde o pobre ministro das Forças Armadas volta ser humilhado: “diante de Trujilllo sua valentia e seu senso de honra se apagavam, ele era dominado por uma paralisia da razão e dos músculos e uma reverência servis”, que o deixavam “moralmente aniquilado”. O acordo entre os conspiradores previa que, uma vez cometido o magnicídio, Pupo prenderia o restante da família Trujillo, encabeçaria uma junta cívico-militar e convocaria eleições livres. Nada disso acontece: assim que toma conhecimento do crime, Pupo faz exatamente o contrário do que se espera dele, enquanto os colegas, aflitos, procuram sem resposta se salvar. A ideia de matar Trujillo fora de Pupo, e por quê? Segundo ele, por causa da “mágoa acumulada das infinitas ofensas de Trujillo”. Porém, essa mágoa não resiste a imperativos maiores: ele pertence ao clã do “Generalíssimo” (é casado com uma sobrinha do ditador), fora por ele promovido ao topo da hierarquia militar e, além disso, porque Trujillo “de vez em quando lhe deu dinheiro”. Conclui, portanto, que “teve que pagar esses favores e distinções aceitando desaforos e maus-tratos. ‘É isso o que mais conta’, pensou”.

Com efeito, Pupo Román é o Judas de “A Festa do Bode”, não porque trai Trujillo e sim o grupo de conspiradores que mata o Benfeitor, liderado por Antonio de la Maza e pelo também general Juan Tomás Díaz. Abandonados, esses dois conspiradores encontram a morte em um tiroteio contra os agentes de Johnny Abbes García.

Pelo motivo aludido inicialmente, apenas um civil é pior do que o ex-ministro das Forças Armadas da República Dominicana: o ex-senador Agustín Cabral, vulgo Craninho. Ou melhor, “o inválido”: é assim que Urania trata o pai, ao reencontrá-lo em casa naquele primeiro capítulo, em companhia apenas de uma enfermeira. Ninguém diria que Agustín foi um dos homens mais poderosos de seu país, integrante do círculo íntimo do Benfeitor. Pelo menos até a publicação no El Caribe (órgão “que Trujillo usava para destilar veneno”) de uma carta acusando-o de corrupção. É o início da queda de Craninho, vítima de uma intriga palaciana. O episódio é absurdo (Kafka é citado) para lembrar a similaridade dos regimes tirânicos com o insólito. Tudo se mantém no terreno das conjecturas; há especulações, mas não fica estabelecido o motivo de ter caído em desgraça. Fato é que a vida de Agustín começa, então, a perder o sentido e o homem procura entender o que aconteceu. Ninguém tem uma explicação plausível, mas um certo Manuel Alfonso — cafetão responsável pela aparência do Benfeitor, e também por arranjar-lhe ninfetas — faz aquela proposta infamante a Agustín: oferecer a própria filha como forma de se desculpar, por algo que nem sabe o que é. Bêbado e desmoralizado, o senador se deixa corromper pela ideia bestial: “Eu nunca faria nada, nada, entenda bem, meta isso na sua cabecinha, que não fosse pelo seu bem”, diz à filha, iludida de estar indo a uma “festa” na casa do ditador, para ajudar seu pai!

Associamos corrupção ao roubo do erário público, mas é mais do que isso. Corrupção, segundo o Dicionário Houaiss, é sinônimo de “putrefação”. Agustín nem parece ser um dos homens mais ricos do regime trujillista; sequer duvidamos de sua honestidade enquanto gestor público. Mas o corrupto não é apenas quem rouba: é quem apodrece, em qualquer sentido, inclusive ético e moral, e é por isso que o ex-senador é o mais corrupto de todos. Servil, Craninho Cabral corrompeu-se absolutamente, e por isso sacrifica ninguém menos que a filha para restituir suas vantagens pessoais, no regime. Ele será timidamente reabilitado por Balaguer, mas desde aquela noite não voltara a vê-la: da casa de Trujillo, Urania pede para ser levada a um colégio de freiras, que a exilam nos Estados Unidos, só retornando agora, aos 49 anos de idade. Craninho termina seus dias numa cadeira de rodas, nonagenário, esquecido e solitário. Foi sorte: Pupo Román pagou um preço bem mais alto por sua covardia.

Delatado por Pedro Livio Cedeño, o primeiro conspirador a cair nas mãos de Johnny Abbes García, a influência do general se esvai rapidinho, enquanto os trujillistas se reorganizam. O “insignificante” Joaquín Balaguer é o único conspirador a ter sucesso: move as peças e se legitima como presidente, de fato, num acordo com Ramfis Trujillo, filho de ditador. Este assume o comando das forças armadas e da repressão, matando Pupo com requintes de crueldade, propiciando a segunda cena mais impressionante de “A Festa do Bode”, digna de Cormac McCarthy: “Quando o castraram, o fim estava próximo. Não cortaram os testículos com uma faca, mas com uma tesoura, enquanto estava sentado no Trono. Ouvia risos superexcitados e comentários obscenos, de uns sujeitos que eram apenas vozes e cheiros ácidos, de axilas e fumo barato. Não lhes deu o prazer de ouvi-lo gritar. Eles lhe enfiaram os testículos na boca, e ele os engoliu, desejando que tudo aquilo apressasse a sua morte, coisa que nunca imaginou que pudesse desejar tanto”.

Cada um desses homens poderosos tem seu difícil ocaso. No caso de Trujillo, um semideus, a miséria é que acima dele existe o Olimpo, uma força ainda maior contra a qual nem ele, magnânimo, pode se opor. Uma doença de próstata faz com que tenha uma micção incontrolável, e por fim o leva à impotência sexual naquela noite revelada, por Urania, a uma tia, irmã de seu pai: “Ele sabia lutar contra inimigos de carne e osso. Fazia isso desde jovem. Mas não podia tolerar aquele golpe baixo, não poder se defender. Parecia meio maluco, desesperado. Agora sei por quê. Porque aquele pau que tinha furado tantas bucetinhas não ficava mais duro. Era isso que fazia o titã chorar. Engraçado, não é mesmo?”

O corpo é o limite além do qual não consegue ir. Humilhado pelo mais implacável inimigo dos ditadores — a Natureza —, Trujillo estupra Urania com o dedo.

Quanto a Agustín Cabral e o general Pupo Román, movidos por suborno e sadomasoquismo, Trujillo os definiu de forma simples e direta, para sempre: são “cadelas no cio”, carentes de atenção. Têm algo em comum, além de um chefe para lamber as botas: a ausência de personalidade, visto que sua existência só encontra sentido na adoração de outro ser. Este mito supre suas forças e pode drená-las, como se fossem — e são — homens ocos, pelos quais as tiranias tampouco têm algum apreço verdadeiro. Vale o exemplo histórico de Pupo Román: ditadores não têm amigos, apenas peões, que podem a qualquer momento ser tratados com a mesma perversidade com que se trata os inimigos.