Quando Chico Buarque invadiu o quintal dos escritores

Quando Chico Buarque invadiu o quintal dos escritores

Um jornalista na Europa perguntou certa vez a Chico Buarque se era verdade que ele também compunha músicas, além do livro que divulgava na entrevista coletiva. A questão inusitada, meio absurda para quem conhece o cantor, surgiu durante o lançamento no exterior de um dos romances do autor. Mas fazia sentido e mostrava a distância entre o Brasil e os centros globais de cultura. A resposta de Chico teve uma ponta de ironia, do ponto de vista de um brasileiro: “sim, fiz algumas canções ao longo da vida”.

A anedota deixa evidente a posição de “fora do lugar” assumida pelo Chico Buarque romancista nas últimas três décadas. Sua figura é de uma avis rara no campo cultural. Artista consagrado, porém único e incomum. Compôs canções a vida inteira, criou peças de teatro, escreveu um livrinho infantil para sua filha, invadiu de vez o cercadinho dos escritores em 1991 e faz intervenções públicas por meio de entrevistas na imprensa (que são verdadeiros “paratextos” sobre seu trabalho artístico e a realidade brasileira).

Talvez apenas Nuno Ramos tenha no Brasil a mesma capacidade de ser múltiplo, atuando em várias áreas (artes plásticas, ficção, ensaios, letras de música). Em comum, ambos compartilham o poder da escrita e de um certo espanto frente à situação do país e do mundo. Michel Foucault dizia que sempre buscava o inesperado para leitor, e só valia a pena criar um texto se fosse para trazer o novo. Chico e Nuno exercitam continuamente (de forma inconsciente ou não) o “discurso diferente” tão caro ao filósofo francês.

Chico Buarque: Ao se aventurar pela ficção literária, Chico Buarque saiu do lugar consagrado no panteão da música popular brasileira. l Fotos: Companhia das Letras / A.PAES / Shutterstock

A escrita de Chico atingiu níveis elevados ainda na juventude, antes dos 30 anos de idade. Havia a herança do samba carioca (Noel Rosa, Mário Reis) e a roda de amigos de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda. É quase surreal para um jovem chegar à sua casa em São Paulo dos anos 1950 e dar de cara com uma reunião de Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e Antonio Candido — todos presentes no convívio do velho Sérgio. Nesse ambiente, a educação pela palavra seria tiro certo.

Se olharmos apenas as letras de “Pedro pedreiro”, “Valsinha” e “Construção”, é possível notar a capacidade para a construção de personagens e a criação de universos particulares. Surge uma poesia narrativa, com enredos versificados, numa estilização da vida popular brasileira tão cara ao samba, como à literatura. Fica nítida a tradição modernista, com uma pitada da “humildade” de Bandeira. A canção não sai na forma de um grito e, ao contrário, se constrói no tom baixo, quem sabe por influência da Bossa Nova.

A importância da escrita nas canções buarqueanas foi bem analisada por Adélia Bezerra no livro “Desenho Mágico”. Ela dividiu as letras de Chico em “lirismo nostálgico”, “variante utópica” e “vertente crítica”. Nas canções dos anos 1960 e 1970, o tom político de intervenção era explícito, gerando a imagem do artista engajado. Ao longo dos anos, a veia politizada se tornou mais opaca — jamais inexistente. A música fica intimista, o que exige do ouvinte/leitor uma audição mais demorada e atenta.

Teatro brechtiano

A busca pelo risco apareceu cedo na carreira de Chico. No auge de sua fama, ele escreveu sozinho ou em parceria as peças teatrais “Roda Viva” (1967), “Calabar” (1973) e “Gota D’água” (1975). A influência de Brecht sobre o autor faz parte do clima politizado da época, mas também aparece na junção de dramaturgia e canção popular. A fusão se aprofundou com a “Ópera do Malandro” (1979), uma versão da brechtiana “Ópera dos Três Vinténs”. A alemã Jenny vira a Geni brasileira.

No teatro, Chico ainda criou com Edu Lobo “O Grande Circo Místico” (1983), que flerta com o universo infantil em “Ciranda da Bailarina” e com a canção brechtiana “A História de Lilly Braun”. A história virou recentemente um filme de Cacá Diegues. O público de crianças ganhou ainda a trilha para o musical “Os Saltimbancos” (1977), com o clássico refrão de “A história de uma gata”: “Nós, gatos, já nascemos pobres/Porém, já nascemos livres/Senhor, senhora ou senhorio/Felino, não reconhecerás”.

Escrever para crianças não é fácil, uma vez que exige do autor uma entrada num registro que Freud bem chamou de “fantasiar”. Chico escreveu o livro “Chapeuzinho Amarelo” (1979), na qual uma menina perde o medo do lobo mau. Ela transforma lobo em bolo, num jogo de linguagem que faz a festa de psicanalistas. Por experiência própria, já me diverte muito com as gargalhadas da minha filha, antes de ela aprender a ler, com aquela historinha absurda. A capuz vermelho se torna amarelo, subvertendo contos clássicos.

Fazenda Modelo, 1970

A fase romancista de Chico tem uma estreia nos anos 1970, no ápice da figura política dele. Pareceu um raio em céu azul a ficção “Fazenda Modelo”. Nem o autor pareceu levar tão a sério o livro, batizado de “novela pecuária”. Trata-se de uma alegoria da situação brasileira da época, tendo como referência o livro “Fazenda dos Animais”, de George Orwell, lançado no Brasil daqueles anos como “A Revolução dos Bichos”. Os animais são representações de figuras reais, numa crítica aos autoritarismos.

O que poderíamos chamar de primeira fase da escrita buarqueana, até a década de 1980, é uma produção que tem referências no modernismo (valorização da vida popular) e no engajamento político. Essa “estrutura de sentimento”, para usar a expressão de Raymond Williams, norteou a visão artística daquele período. Foi a crença da arte como vanguarda estética e, também, política para mudar o país. Desenvolvimentismo, projeto nacional popular, revolução, tudo isso fazia parte de um repertório comum do Brasil.

A obra de Chico representou, salvo engano, um dos pontos máximos do empenho de se construir uma utopia brasileira a partir da produção cultural. Há muita gente que imagina o Brasil distante da promessa de futuro criada pela canção popular. Teria sido na música que o país alcançou a modernidade. Algo que o futebol também encarna: a possibilidade de cumprir um destino maior e dar uma contribuição original ao mundo. Certamente é uma ambição do tamanho da floresta amazônica.

Mas o sentimento mudou nos anos 1980. Certas questões são visíveis, como a queda do muro de Berlim, a decretação do Fim da História, a globalização. Ao mesmo tempo, tem-se o invisível, o que só os poetas percebem antes dos outros, para lembrar o alerta de Freud. O artista é quem dispara o alarme de incêndio, para a multidão fugir do incêndio. E quem apertou botão vermelho foi o Chico Buarque romancista, que sai do “modo engajamento” e entra no “modo perplexidade” nos anos 1990.

Caminho da ficção

Estorvo (1991)

Os romances de Chico desconcertam e ainda deixam perplexos os admiradores. Onde está o cancionista que reúne avós, filhos e netos para shows apoteóticos? Poucos entenderam a entrada dele para o mundo sério da ficção. Há 30 anos, saiu o romance “Estorvo” (1991). O personagem “Eu” anda sem rumo pelo Rio de Janeiro, que deixou de ser a cidade maravilhosa e está misturada e estranha. Parece abstrato, mas é tudo muito real. Apreende-se a realidade por meio de uma escrita antirrealista.

A escrita ficcional de Chico apareceu de forma nervosa, tensa, dando vertigem no leitor. “Estorvo” pinta o quadro do país despedaçado, sem a utopia modernista da vida popular. O sítio paradisíaco da família de “Eu”, por exemplo, virou refúgio de gangues. O campo é tão infernal quanto o espaço urbano. A irmã dele mora num condomínio carioca de luxo e é casada como um sujeito que tem um pé em negócios criminosos. A cidade ficou um lugar inóspito, quase uma alucinação.

Benjamin (1995)

Uma parte da crítica torceu o nariz. Tradicionalista, Wilson Martins acusou Chico de plagiário, não aceitando a apropriação de outros autores. A escrita e a música de Chico sempre foram reelaboração do passado. Na verdade, Martins exerceu seu papel público que foi brilhantemente ironizado por Silviano Santigo num personagem do romance “Stella Manhattan” (1985). Outra parte da crítica, tendo Roberto Schwarz à frente, enxergou no “Estorvo” o surgimento de uma nova sensibilidade brasileira.

A entrada de Chico no campo literário ocorreu de forma calculada e precisa. Por trás de tudo, estava a editora Companhia das Letras, com sua estratégia de marketing de lançar novatos e dar a eles o status de autores de best-sellers. Cada romance de Chico provoca um terremoto em seu lançamento. A situação-limite foi a polêmica em torno de Prêmio Jabuti no ano de 2010. Mágoas e ressentimentos vieram à tona com a premiação de “livro do ano” para o músico que invadiu e ocupou o quintal dos escritores.

Budapeste (2003)

O segundo romance, “Benjamin” (1995), voltou a provocar ódios. Plagiário, medíocre, entediante: a coleção de críticas e xingamentos foi extensa. O invasor havia ido longe demais, alertavam os inimigos. Foi preciso um ensaio do crítico José Paulo Paes para acalmar os ânimos. Reconheça-se que, naquela altura da carreira, Chico decidira tomar riscos desnecessários do ponto de vista de mercado. No entanto, o verdadeiro artista dá saltos no vazio, sem colchões ou redes de proteção na queda.

A narrativa traz a memória dolorosa do personagem Benjamin Zambraia, que é assombrado pela lembrança da namorada (Ariela) desaparecida nos anos 1960. Um olhar “hiper-realista”, segundo Paes, esmiuça à exaustão os seres e as coisas. Surge em cena a questão da memória e do trauma político dos anos 1960 para uma parte da juventude. Assim como no “Estorvo”, a narrativa coloca o leitor na beira do abismo, tendo vertigens com o vai-e-vem entre o presente e o passado.

Leite Derramado (2009)

O terceiro romance, “Budapeste” (2003), talvez seja o mais divertido dos romances, ao contar a história de um tradutor brasileiro que vai parar na Hungria. O personagem José Costa vive o anonimato de um “ghost writer”, escrevendo para outros assinarem seus textos. Ele é casado com a apresentadora de telejornais Vanda — numa crítica profunda e sutil à superficialidade da mídia. Um dia, vai parar na Hungria, onde vive uma série de situações inesperadas. Lá torna-se o escritor Zsoze Kósta.

A questão do duplo fica bem evidenciada em “Budapeste”. José Costa é Zsoze Kósta e, também, foi inspirado na figura real de Paulo Rónai, o judeu húngaro que veio para o Brasil na Segunda Guerra Mundial. Em comum, eles são homens que assimilam uma língua e uma cultura estrangeiras. O resultado alcançado por Chico neste romance levou Héctor Hoyos a incluí-lo em sua grande análise do romance latino-americano de hoje, “Beyond Bolaño — the global latin american novel”.   

O Irmão Alemão (2014)

No quarto livro, “Leite Derramado” (2009), Chico escreveu possivelmente a crônica do Brasil no século 20. Os personagens Eulálio e Matilde são versões dos machadianos Bentinho e Capitu. Trata-se de quase um romance histórico, devido à reconstituição do tempo e do Brasil em diferentes épocas. Eulálio encarna o sujeito da tradição brasileira de perversos e banais, iniciada pelo Brás Cubas de Machado de Assis. Seus descendentes no Brasil contemporâneo mostram a incapacidade do país de sair do lugar.

A obra seguinte, “O Irmão Alemão” (2014), é um jogo em torno de uma história familiar: o filho desconhecido do pai de Chico (Sergio Buarque de Holanda), que morou na Alemanha durante seus anos de juventude. O romance narra as histórias da família Hollander na cidade de São Paulo dos anos 1960. A história contada leva o leitor para um passeio pela capital paulista da época, e a descoberta de uma antiga carta é a razão para o narrador investigar a existência do irmão misterioso.   

Essa Gente (2019)

O que não se pode reclamar dos livros de Buarque é da surpresa a cada lançamento. A obra mais recente, “Essa Gente” (2019), mostra o personagem Duarte no Rio dos anos 2018 e 2019. A gente descolada de outros tempos, no bairro do Leblon, dá lugar a uma gentalha que faz rir e deixa o leitor de cabelo em pé. Como “Estorvo”, é outro romance que dá vertigem. A narrativa é construída na forma de cartas, depoimentos, com datas bem precisas e alusões a eventos recentes que realmente ocorreram.

Ao se aventurar pela ficção literária, Chico Buarque saiu do lugar consagrado no panteão da música popular brasileira. Não é pouca coisa se arriscar em romances vertiginosos e que expõe a perplexidade dele em relação ao Brasil e ao mundo. Como na canção, ele aposta na acumulação cultural, do que veio antes, sem a volubilidade tão característica das pessoas letradas na cultura brasileira. Chico prefere levar às últimas consequências seu projeto estético, sem entrar em modismos de ocasião.