Autoficção é coisa de gente sem imaginação

Autoficção é coisa de gente sem imaginação

“Não há azul mais mediterrâneo do que o azul do mar Mediterrâneo”, eu dizia para Itamar Vieira Junior, autor do romance “Torto Arado”, enquanto observávamos o azul mediterrâneo do mar Mediterrâneo.

Estávamos na minha modesta quinta em Ibiza, uma ilha modesta na modesta costa da Espanha. Era uma noite fresca de um junho modesto e nós bebíamos whisky (eu) e pinga (Itamar), enquanto observávamos o ensolarado mar azul, algo bastante peculiar, uma vez que era noite. Mas a vida é assim… cheia de mistérios, feito um baú de avó escondido debaixo da cama.

E o que fazíamos em Ibiza? Bem, com o retumbante sucesso do meu livro “Histórias Jamais Contadas da Literatura brasileira” (Revista Bula Livros, compre aqui), decidi reunir vários dos meus colegas escritores para uma comemoração privada na ilha mediterrânea onde mantenho minha modesta mansão. Ali, eu me isolo, de quando em quando, para refletir sobre os desatinos da humanidade e o uso correto do ponto-e-vírgula.

Quando viu Itamar e a mim ali fora, Djamila Ribeiro se aproximou, toda serelepe. “Só vim aqui para te dizer, Aran, que ninguém, além de você, consegue traduzir os reais sentimentos da mulher negra brasileira na literatura brasileira atual”, ela confidenciou. Agradeci Djanila (ou Djá, como eu a chamo), mas desconversei, é claro, pois não queria constranger o Itamar, que já tinha ficado de bico. Além disso, sou muito modesto, fato amplamente reconhecido e celebrado por todo mundo que me conhece. Ano passado, inclusive, ganhei o grande prêmio de Escritor Mais Modesto da Literatura Nacional, mas prefiro não falar sobre isso. 

Deixei Djá com o Itamar e entrei na minha modesta mansão para verificar se os demais convidados estavam sendo bem servidos. Leandro Karnal e Mário Sérgio Cortella conversavam animadamente com Luiz Felipe Pondé e Márcia Tiburi. Quando os filósofos me avistaram, vieram todos na minha direção querendo saber qual era o sentido da vida, mas eu, modesto que sou, apenas perguntei se todo mundo estava bebendo e comendo direitinho. Ao ouvir isso, os olhos do Mário Sérgio Cortella se encheram de lágrimas. Os outros pensadores não entenderam picas, mas o professor foi professoral: “Nosso anfitrião-oo, ou seja, aquele que nos recebe-ee, acaba de nos revelar, no sentido de elucidar e responder, a questão que mais atormenta-aa a humanidade-eee: o sentido da vida-aaa é comer e beber beee-eeem!” Os quatro me aplaudiram efusivamente. Mas, modesto que sou, os deixei com a Epifania e me afastei.

Epifania é uma moça que trabalha pra mim aqui na ilha. Ela toma conta da mansão quando eu estou fora e, em noites de festa, fica de olho nos garçons locais, tudo vagabundo e maconheiro, que é só o que existe em Ibiza.

Estava envolto nesses pensamentos canábicos, quando Marçal Aquilo e Marcelo Mirisola se aproximaram querendo que eu explicasse como construir uma narrativa. Disse que não podia no momento, pois tinha avistado Chico Buarque sozinho no canto, sem conseguir fazer amigos ou influenciar pessoas.

Aproximei-me do baluarte da música brasileira e, bom anfitrião que sou, perguntei o que estava pegando. “Ninguém fala comigo porque eu não sou escritor”, ele reclamou. “Ah, vem comigo”, eu disse.

Levei o pobre cantor até o Olavo de Carvalho, que conversava animadamente com o Felipe Neto e Whinderson Nunes. Os YouTubers foram solidários com o colega desenturmado e o receberam muito bem na sua rodinha de influencers.

Foi bom. Tirando Chico Buarque, não costumo receber gente da MPB na minha modesta mansão. Eles adoram rimar “mansão” com “violão”, o que causa grande constrangimento aos poetas convidados. Melhor evitar. Mas o Chico já foi jabutizado e camõesnizado, logo pode ser considerado um de nós.

Feliz por ter integrado o cantor aos YouTubers, continuei a percorrer a casa até sair do outro lado, que dava para uma área de exuberante verde mediterrâneo.

Ferréz e J.P. Cuenca bebiam cerveja e conversavam sobre autoficção. Inebriados pela minha presença queriam saber o que eu pensava sobre esse gênero literário tão caluniado e esculachado. “Olha”, eu disse, “autoficção, como tudo na vida, depende do lugar e da companhia. Por falar nisso, vocês já viram azul mais mediterrâneo do que o azul do mar Mediterrâneo?”