100 anos da morte de Hugo de Carvalho Ramos, autor que influenciou Guimarães Rosa

100 anos da morte de Hugo de Carvalho Ramos, autor que influenciou Guimarães Rosa

Uma ficção-reportagem-documentário sobre os últimos meses do maior escritor goiano, que escreveu um clássico absoluto do regionalismo, “Tropas e Boiadas”, e se suicidou no dia 12 de maio de 1921

23 de julho de 1920. Cidade de Uberaba, Minas Gerais. Final de uma manhã fria. Céu de azul radiante. O rapaz de olhar triste, aparência franzina, cerca de 1,70 m de estatura, pele muito clara, trajado de calça preta, camisa cinza e paletó escuro, desembarca na estação ferroviária.

Com apenas uma mala de mão, vai em direção a uma charrete de aluguel. Dirige-se ao condutor: — Vamos pro “Jornal Lavoura e Comércio”, na Rua Vigário Silva, por favor.

Hugo de Carvalho Ramos, o nome do chegante. Autor do livro “Tropas e Boiadas”, lançado três anos antes, no Rio de Janeiro, com muito boa acolhida crítica, saudado entusiasticamente por gente como Antônio Torres, Medeiros e Albuquerque, Jackson de Figueiredo, Viriato Corrêa, Andrade Murici, Agripino Grieco e outros.

Influenciado por Euclides da Cunha, Hugo escreveu sua pequena obra-prima que futuramente, por sua vez, iria influenciar Guimarães Rosa e Bernardo Elis, entre outros. Estão ali retraçadas vidas e mortes do sertanejo goiano num ambiente inóspito de marcada injustiça social.

Viera da Capital Federal, a convite do irmão mais velho, Victor de Carvalho Ramos, que se radicara na cidade mineira depois de se casar, e montara banca de advocacia.

Hugo saíra do Rio de Janeiro, onde morava com a mãe, Mariana, o padrasto João Câncio, e os irmãos Ermelinda, Américo e Ary, além dos meios-irmãos Stela e João, crianças de 5 e 4 anos, respectivamente.

Victor havia chamado o mano mais novo para que este pudesse espairecer, distrair-se. No Rio, o escritor começava a recair na depressão, companheira infausta e intermitente desde a primeira adolescência.

Ilustrações de José Carlos Guimarães

Certamente contribuiu para o estado mórbido de Hugo o fato de pressentir que não conseguiria concluir a graduação em Direito. E os poucos e queridos amigos já estavam se dispersando ao final do curso, deixando-o com a sensação de abandono ou desamparo.

Em Uberaba, Hugo chega bem. Passa semanas em conversas descompromissadas no jornal do qual era colaborador havia muitos anos, propriedade de Quintiliano Jardim, sócio do sogro de Victor.

Visita fazendas. Anda a cavalo. Ajuda a cuidar dos animais. Dias de ócio, bom para descansar o físico e aliviar a mente.

Mas o ócio em demasia cansa. E o jovem escritor se impacienta.

Trabalho é uma forma de sair da rotina cansativa que o “não-fazer-nada” causa. Victor consegue ocupação para o irmão: agente especial do recenseamento, tarefa a partir da cidade de Araxá.

Hugo assume o cargo em meados de agosto. Trabalho duro que exige deslocamentos por automóvel, trem de ferro e lombo de animal.

Em carta, dá conhecimento das novidades à mãe (grafia original):

Araxá, 23-8-1920.

Aqui cheguei ontem (22-agosto), de volta de S. Pedro de Alcântara e Pratinha, tendo feito uma viagem redonda de mais de 200kls. em automóvel, além de grande trecho em trem e 4 lèguas a cavalo. Saí daqui no dia 16, às 6 hs. da manhã, tendo chegado no mesmo dia a S. Pedro, onde instalei a junta local, partindo depois em trem para Pratinha (estação), aí montando a cavalo e indo ao povoado do mesmo nome.

Nêsse pedaço, muito padeci com o frio e a geada, pois partindo da estação com sol muito quente, no alto da serra apanhou-nos forte temporal de chuva de pedra, estragando a única mala que trazia (a de papelão), e por pouco me inutilizava todo o material do governo que o camaradinha trazia no arção. Depois de quarto de hora com um frio de cortar, abrigamo-nos num “retiro”, onde troquei a roupa e fiz secar os papeis, chegando em Pratinha às 9 da noite. Voltei a S. Pedro adoentado, tendo passado ali dois dias na cama, com um frio horrível, mas graças a Deus e apesar da chuva, pude chegar ontem aqui, apenas encatarrado…

De 1º de setembro em diante, porém, permaneço na sede do município, só indo nos distritos no fim do ano, encerrar os trabalhos. Espero nos próximos meses recuperar em dinheiro a trabalheira e os gastos forçados a que estou sujeito este mês.

Adeus abraços e beijos nas crianças e saudades a todos de casa.

Do filho atento.

Hugo.

A faina é pesada. Vários distritos, vilas, povoados a percorrer.

O jovem intelectual, de físico frágil, ressente-se. Para piorar, sente os problemas estomacais que sofre desde criança, uma dispepsia renitente, que sempre o obrigou a ter muito cuidado com os alimentos.

Além disso, ele teme que resquícios da gripe espanhola que contraiu no Rio de Janeiro há menos de três anos estejam afetando seu ânimo.

Polígrafo e extremamente apegado à família, escreve muitas cartas aos irmãos, à mãe, ao padrasto, a amigos.

Conta das novidades e dificuldades do trabalho: resistências dos moradores simplórios ao recenseamento, frio, dinheiro curto…

O isolamento, a falta de livros e jornais e a saudade da família pesam em demasia. E a velha companheira, a depressão, lhe dá uns toques: “estou aqui, amigo…”

Neurastenia, é como chamam nesses tempos…

Os males do estômago o enervam, derrubam seu humor.

Nas cartas, já mostra a mudança de ânimo. Trecho de missiva à irmã Ermelinda, datada de 2 de novembro:

Está chovendo hoje, e estou de novo sob a pressão de um terrível abatimento. Às vezes sou tentado a desesperar. Receio nunca poder domar esta fraqueza de nervos, que me faz ora calmo, ora vendo tudo sob o prisma do mais negro pessimismo.

No início de dezembro, Hugo conclui o trabalho em Araxá. O irmão conta que ele aparece em Uberaba completamente deprimido, faces lívidas, magro, acabrunhado, insone.

E a se queixar de saudades da família no Rio. Recusa o convite para novamente passear na fazenda do sogro de Victor. As conversas intelectuais na sede do jornal tampouco lhe interessam.

Embarca de trem para São Paulo (via para chegar ao Rio) no dia seguinte. Por telegrama Victor comunica à família a partida inesperada.

Três dias se passam e o irmão recebe comunicação telegráfica: Hugo não havia chegado ao Rio. Victor pensa no pior.

Morte em desastre? Fica pelo caminho, distraído que era? Suicídio numa crise de desespero? Está em algum hotel? Ou num necrotério?

O advogado vai à polícia de São Paulo, comunica o fato e passa as informações pertinentes. Vinte e quatro horas depois recebe a notícia de que Hugo se hospedara num hotel e já havia embarcado para o Rio pela Central do Brasil.

Por cerca de 20 horas, Hugo ficara “solto!” em São Paulo, num estado de ânimo precário. Bate pernas pelas imediações do hotel.

Vê fachadas de livrarias, mas não entra. Numa delas, meio escondido no fundo da vitrine, avista um exemplar de seu livro. A capa singela, apenas o título em tipologia pesada preta no fundo branco-leitoso do papel. A posição de esguelha, permite ler apenas Tropas e boia…

Pensa entrar, pegar o livro, folheá-lo. Talvez dizer que o tinha escrito, resultado de anos de trabalho. Mas ao ver o vendedor a encará-lo, retrai-se. Segue em frente. Voltar ao hotel, dormir, o embarque no dia seguinte é muito cedo.

O jovem escritor chega ao Rio de Janeiro; em casa, enfim, depois de cinco meses fora.

Natal com a família. Estado de prostração nos dias seguintes. A velha companheira…

A folha do calendário vira. 1921. Hugo lê e relê a Bíblia. Conversas místicas com a mãe e os irmãos, que o ouvem sem compreender muito bem. Escreve pouco, garatujas incompreensíveis…

Tosse. Fuma muito. Médicos são consultados. Por severa recomendação médica, o cigarro lhe é proibido. A mãe o vigia. Além da neurastenia, a dispepsia o castiga. Arrotos, gosto amargo na boca…

Remédios, injeções, repouso. A família o monitora.

Viagem, uma viagem! Pode ser, mais uma vez, uma saída do estado depressivo. Hugo vai com o padrasto e um amigo médico para São Paulo. Por algumas semanas vareia por Campinas, Santos…

Volta ao Rio, mais calmo. Vai visitar a irmã na cidade de Resende.  Passeia, faz caçadas, pescarias em canoa. Escreve à mãe em 7 de março. Reclama de ter ficado só — a irmã já tinha voltado. Informa que está tomando os remédios que havia levado.

Escreve também a Victor (o último comunicado ao irmão mais velho). Conta do passeio a São Paulo, fala das diversões em Resende, mostra-se entusiasmado, compara as paisagens que vê com as de sua Goiás natal…

De volta ao Rio, no casarão da Rua General Canabarro, no Bairro da Tijuca.

Nos primeiros dias de março, a velha companheira abre as garras… O acabrunhamento é intenso. A dispepsia o castiga.

Hugo dorme vigiado pela família, com a porta do quarto aberta. Remédios são dados às horas certas.

Conversa pouco com os irmãos e com a mãe. Nem com Stelinha e Joãozinho, com quem sempre gostou de prosear. As duas crianças mostram receio de se aproximar do irmão, que está “esquisito”.

Hugo volta-se totalmente para dentro de si. Em sua mente divagante vê imagens do pai tão querido, Manoel Lopes de Carvalho Ramos, que morreu louco havia um decênio e de quem nem pôde se despedir, tão longe estava.

… A bisavó, Mãe-Xi, que lhe contava histórias de ouros escondidos por faiscadores descendentes do Anhanguera e ele, criança, imaginava descobrir essas fortunas. Casos de negros suicidas… histórias que ele depois aproveitou em seus contos…

… O tio-avô João Lopes de Carvalho a lutar na guerra do Paraguai, sendo ferido, ferindo índios, destroçando corpos, espetando crianças em baioneta…

… Ruas de sua Vila Boa, do Rio Araguaia em seu Goiás amado, aonde queria voltar para colher dados e escrever um novo livro, de cunho mais sociológico, projeto ao qual nunca conseguiu dar partida… 

… Homens castrados, virgens roubadas, tropeiros, pingos, pangarés, poldros… bruxas, sacis, tatus a devorar cadáveres… sertanejo decepando a própria mão picada por urutu…

Os personagens de seu livro ora às gargalhadas, ora aos choros…

… Imagens infernais, cenas dantescas, visões do Éden…

… Filósofos, poetas, escritores… o bardo Ossian, Rabelais, Afonso Arinos,  José de Alencar, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Euclides da Cunha. Com absoluta nitidez aparece Olavo Bilac, a quem um dia avistara à porta da Confeitaria Castelões, no centro do Rio de Janeiro, mas faltara-lhe coragem para apresentar-se ao ídolo cujos versos sabia de cor…   

… As mocinhas a quem namorou em Goiás e no Rio… o prostíbulo…

As imagens vêm em influxos, assustando-o, maravilhando-o, recuperando momentos bons e ruins…

Um dia, Hugo pega seus escritos na gaveta, leva-os ao quintal, debaixo da mangueira frondosa, e taca-lhes fogo. Sobram apenas fragmentos de papel, pedaços de frases…

É a segunda vez que queima escritos, o chamado “auto de fé”; a primeira  fora há sete anos, quando uma crise aguda de neurastenia obrigou a família a levá-lo ao psiquiatra Juliano Moreira, o mais afamado da Capital Federal então, que o internou por quatro meses…

Passa os dias ensimesmado, o que vai se agravando cada vez mais.

Balança-se na rede goiana. Pouco fala. Pouco sorri. Praticamente não se alimenta. Estomagado, hálito fecal.

No início da noite de 11 de maio, depois do remédio, recolhe-se.

Na manhãzinha do dia seguinte a mãe o encontra pendurado na escápula da rede goiana. Hugo de Carvalho Ramos se mata a nove dias de completar 26 anos…

Jornalista Cezar Santos, na rua onde morou HCR, no bairro da Tijuca RJ (registro de Rosana Moura, em 2015)

Este texto é uma criação com tratamento ficcional (e alguma técnica jornalística) em cima de fatos e impressões narrados em “esboços biográficos” escritos por Victor de Carvalho Ramos sobre o irmão mais novo, Hugo de Carvalho Ramos. Também há ilações a partir de textos do autor no volume “Plangências”, das “Obras Completas de Hugo de Carvalho Ramos”, e da biografia de Manoel Lopes de Carvalho Ramos, pai de Hugo, intitulada “Passageiro da História: do Sertão ao Infinito”, escrita por Nelson Figueiredo (Editora Kelps, 2016). A carta de Hugo a Mariana Loiola está nas “Obras Completas” (página 229), livro editado por Victor de Carvalho Ramos (Edições Panorama, 1950).

Cezar Santos, jornalista, é pesquisador da vida e obra de Hugo de Carvalho Ramos.