Criador de Blade Runner, Philip K. Dick foi o “Shakespeare da ficção científica”

Criador de Blade Runner, Philip K. Dick foi o “Shakespeare da ficção científica”

As histórias chamadas populares são um bom caminho para quem busca entender grandes questões do mundo contemporâneo. Nelas, os conflitos e as situações aparecem de forma explícita, transparente, ao contrário da leitura considerada difícil que demanda a arte com o rótulo erudito. O romance policial e a ficção científica, ligados ao entretenimento, se tornaram nos últimos 50 anos um campo fértil para leituras críticas, principalmente ao abordar temas como o pesadelo tecnológico da vida moderna e as utopias/distopias.

Philip K. Dick (1928-1982) é um dos principais nomes de uma literatura vista a princípio como mero passatempo, publicada em revistas baratas nos Estados Unidos, mas que ganhou ares filosóficos por antecipar problemas pertinentes do século 21. Sua prosa também virou referência para diversos autores e conquistou a legião de fãs, por conta das adaptações para o cinema e a televisão. São dele os argumentos de “Blade Runner” (1982), “Minority Report” (2002) e da série “O Homem do Castelo Alto” (2015).

Morto precocemente de um AVC aos 53 anos, Dick deixou uma produção impressionante de mais de 40 romances, 130 contos e inúmeros ensaios. O cinema foi responsável, sem dúvida, por alavancar de vez, nos anos 1980, sua popularidade que chamava a atenção de filósofos e críticos. Ao fazer o ensaio-obituário do autor, Fredric Jameson disse, por exemplo, que se tratava do “Shakespeare da ficção científica”. A reputação dele como escritor havia atingido altos níveis nos Estados Unidos e, sobretudo, na França.

A prosa de Philip Dick se encaixou perfeitamente no cenário cultural para narrar o pós-bomba atômica da Segunda Guerra Mundial. Nunca a ideia de fim de mundo esteve tão presente, ao mesmo tempo que a economia global vivia os seus anos dourados. Uma contradição que tinha, de um lado, a tranquilidade idealizada para a classe média dos EUA e, por outro, o risco de destruição efetiva do planeta por meio do conflito mundial. Um contexto bem captado por escritores como Kurt Vonnegut, contemporâneo de Dick.

O chileno Roberto Bolaño foi um admirador entusiasmado: “Dick era um paranoico. Dick é um dos dez melhores escritores do século 20 nos Estados Unidos, o que não é dizer pouco. Dick era uma espécie de Kafka passado pelo ácido lisérgico e pela raiva”. O autor de “Os Detetives Selvagens” acrescentou: “Dick é o primeiro, literariamente, a falar com eloquência da consciência virtual. Dick é o primeiro, e se não o melhor, a falar sobre a percepção da velocidade, a percepção da entropia, a percepção do ruído do universo”.

Obra múltipla

Fredric Jameson identificou três fases na obra de Philip Dick. Uma primeira concentrou narrativas convencionais, entre 1955 e 1960, onde aparecem sempre casais americanos e seus conflitos da época. Em seguida, veio o período centrado na ficção científica (1961-1968), quando lançou “O Homem do Castelo Alto” e “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, a base para o roteiro de “Blade Runner”. As últimas histórias, na terceira fase, trouxeram o ponto de vista mais místico e religioso do autor (1973-1981).

Philip K. Dick, 1980 | Foto: The Verge

Criança obcecada por música clássica, Dick morava na infância apenas com a mãe divorciada, em São Francisco. O pai era um funcionário do governo dos EUA. Um trauma marcou a família: o escritor teve uma irmã gêmea que morreu ainda bebê, com poucos meses de vida. Na lápide do cemitério, foram colocados estranhamente os nomes de Jane e do próprio Philip, com data em aberto para ser preenchida quando morresse. Em 1982, seu pai organizou o funeral e viu o filho ser enterrado.

A ambição do menino era grande, e ele foi criado para ser um artista. Tinha preferência por Edgar Allan Poe e H.P. Lovercraft. Na chegada à vida adulta, a pretensão era estar no rol da alta literatura. “Dick, um dócil camaleão, parou de ler ficção científica, escondeu as revistas baratas que encantaram sua adolescência e só recorria a Joyce, Kafka, Wittgenstein e Albert Camus”, disse Emmanuel Carrère, que escreveu a biografa “Eu Estou Vivo e Vocês Estão mortos — A Vida de Philip K. Dick” (1993).

Casou-se cedo e separou da primeira esposa em pouco tempo. Até o final da vida, o autor contabilizou cinco casamentos e cinco divórcios. Nenhuma delas conseguiu afastar Dick das aventuras com drogas, como o LSD, e das experiências místico-religiosas. A mudança rumo à ficção científica veio com a segunda esposa, Kleo Apostolides, que o libertou da obsessão com a perfeição artística e a alta literatura. Foi ela quem colocou Dick em contato com Anthony Boucher, responsável por uma oficina de escrita criativa.

“[Anthony Boucher era uma] espécie de homem-orquestra da literatura popular e que, sob vários pseudônimos, compunha, fazia críticas e editava romances policiais e de ficção científica. O fato de um adulto, um melômano experimentado, um homem distinto a todos os olhares, não desdenhar o gênero ao qual ele acreditou ter sido obrigado a dar as costas para não ser considerado um subdesenvolvido foi para Dick um motivo de estupor, e depois de alívio”, conta Carrère em seu livro.

Condição humana

Segundo Jurandir Freire Costa, que fez um longo e completo ensaio sobre o autor, Dick colocou duas questões centrais em sua extensa produção literária: o que é a realidade e qual a genuína natureza da condição humana. Nisso, entram as relações do ser humano com as máquinas e a moral. O que aparece em outras palavras na obra do escritor, diz ele, são os temas da liberdade e da ética. As análises estão no livro “O Ponto de Vista do Outro — Figuras da Ética na Ficção de Graham Greene e Philip K. Dick”.

Ridley Scott| Foto: IMDb

O psicanalista brasileiro vê uma riqueza tão grande que aproxima Dick de pensadores modernos como Jacques Derrida, Giorgio Agamben e Slavoj Zizek. Estamos falando de um “diálogo” com o pensamento crítico mais avançado dos últimos 50 anos. Segundo Freire, os três filósofos e o ficcionista coincidem na “aspiração messiânica da redenção”. Jameson reforça esse traço religioso do escritor e identifica o aspecto da “salvação”, o que atraiu por exemplo os leitores do pensamento New Age.

“O parentesco com Derrida é visível na ênfase dada às ideias de justiça e amor, traduzidas em seu vocabulário pela noção de ‘empatia’. A semelhança com Agamben mostra-se, principalmente, na defesa da individualidade ‘além das identidades’. Ou, visto de outro ângulo, na defesa da existência de uma comunidade sem pré-requisitos fixos de inclusão do sujeito no seu ethos. Enfim, a proximidade com Zizek mostra-se na valorização do ato ético como ruptura com os códigos legais e morais rotineiros”, diz Freire.

Ao fazer “Blade Runner”, o diretor Ridley Scott trabalhou um roteiro que, na verdade, é um complemento a “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas” (1968). Perdeu-se a parte mais filosófica do livro, mas ganhou-se a exuberância das imagens do cinema. Até hoje é um dos filmes mais impressionantes já criados. Apenas o romance traz a discussão complexa sobre empatia que diferencia humanos e androides. No final das contas, o filme acaba sendo até mais otimista em relação ao futuro do que o livro.  

O romance “O Homem do Castelo Alto” (1962) virou série do Amazon Prime. Nela, os nazistas venceram a Segunda Guerra Mundial, ocuparam os Estados Unidos e partiram para a solução final. É um exercício de História contrafactual, ou seja, como teria sido o destino do mundo se a Alemanha e o Japão tivessem saído vencedores. Algo na linha do que imaginou Philip Roth em seu “Complô Contra a América”, que tem a vitória de um candidato nazista a presidente do país na década de 1940.

Os contos de Dick também serviram de base para grandes filmes. Steven Spielberg filmou “Minority Report” (1956), usando o mesmo título. Trata-se de um futuro no qual a polícia tem um mecanismo que desvenda crimes antes de eles acontecerem. Esse é um paradoxo lógico colocado em prática pelo governo dos Estados Unidos na “guerra ao terror”, após os atentados de 11 de setembro de 2001. Para Slavoj Zizek, a estratégia de George W. Bush copiou a ideia de Dick, para caçar árabes suspeitos de terrorismo.

Em 1990, o diretor Paul Verhoeven usou o conto “Lembramos para você a preço de atacado” (1966) para fazer o filme “O Vingador do Futuro”, com Arnold Schwarzenegger. A história mostra uma empresa que vende memórias e experiências de viagens, a serem implantadas no cérebro de pessoas. É a discussão sobre o que é a realidade e qual a condição humana num mundo regido pela tecnologia. O mais interessante é que esses temas foram levantados por Philip K. Dick nas décadas de 1950 e 1960.