Vassili Grossman, o homem que derrotou o comunismo

Vassili Grossman, o homem que derrotou o comunismo

“Vida e Destino” (Alfaguara, 915 páginas, tradução de Irineu Franco Perpetuo), do escritor ucraniano Vassili Grossman (1905-1964), é o “Guerra e Paz” do século 20. A diferença é que Liev Tolstói (1828-1910) viu a edição de seu livro e ganhou o aplauso dos leitores de seu tempo. Desesperançado, Grossman morreu, aos 58 anos, sem saber se, algum dia, seu romance seria publicado. Sua história daria um romance — aliás, deu: é “Vida e Destino”, um livro notável (leitores patropis têm sorte: a tradução de Irineu Franco Perpetuo, direta do russo, é muito bem-feita e saiu em 2014; eu havia lido antes a edição espanhola). A pesquisadora russa Alexandra Popoff decidiu escrever não um romance, mas uma alentada biografia do escritor e jornalista russo — “Vasili Grossman y el Siglo Soviético” (Crítica, 512 páginas, tradução de Gonzalo García).

“Vida e Destino” começou a ser escrito quando Stálin ainda vivia. Fica evidente que, considerando que o livro é uma crítica corrosiva ao totalitarismo, se trata de um ato de uma coragem temerária. Obviamente, Vassili Grossman sabia que publicá-lo, sob o governo do tirano, era impossível.

Com a morte de Stálin, e o relativo processo de desestalinização (o “degelo”) — os crimes “do” ditador, que não eram só dele, foram denunciados em 1956, por Nikita Khruschov —, Vassili Grossman decidiu apresentar sua história sobre o século soviético e o stalinismo à impressa. Tratava-se de outro ato de coragem. Porque os velhos stalinistas, posando de anti-stalinistas, agora estavam no poder e também eram responsáveis pelos crimes do governo do líder totalitário.

Vasili Grossman y el Siglo Soviético, de Alexandra Popoff (Crítica, 512 páginas, tradução de Gonzalo García)

Alexandra Popoff sustenta que o livro foi a primeira tentativa de “‘ressuscitar’ tanto a verdade histórica quanto os nomes daquelas pessoas que o regime havia matado e eliminado dos arquivos. Em ‘Vida e Destino’, Grossman submeteu a julgamento o stalinismo, justapondo os crimes contra a humanidade que os soviéticos perpetraram com os cometidos pelos nazistas. Em 1960, dois anos antes de que o mundo conhecesse a experiência de [Aleksandr] Soljenítsin no Gulag, Grossman completou sua denúncia das duas ditaduras e dos sistemas de escravidão que criaram. Decidir-se a tentar publicá-la na União Soviética foi um desafio de extrema valentia”. Pois, como escreveu o poeta Ievguêni Ievtuchenko, no poema “Os herdeiros de Stálin”, “enquanto neste mundo houver herdeiros de Stálin, para mim, no Mausoléu, Stálin ainda resiste” (tradução de Haroldo de Campos; “Poesia Russa Moderna”, Editora Brasiliense). O romance de Vassili Grossman começa com a descrição da “estrutura urbana dos campos de concentração da Europa no século 20: um mundo de ruas largas e retas, com uma sucessão de barracões idênticos, nos quais a individualidade se apaga: dezenas de milhões de personas compartilhavam o mesmo destino. Várias pessoas viveram e morreram em um campo nazista assim como nas geladas estepes do Extremo Oriente da Rússia. Tais pessoas eram tratadas como mortas-vivas”, frisa Alexandra Popoff.

Feita a comparação entre o Gulag e o Holocausto, o escritor procurou “narrar a história de sua geração, que havia vivido duas ditaduras gêmeas e a Segunda Guerra Mundial. Queria que a Rússia pós-stalinista enfrentasse o passado igual a Alemanha depois do nazismo”. Mas a Alemanha, depois da batalha, havia se tornado uma sociedade democrática — ao contrário da União Soviética.

Como sua causa era justa, um acerto de contas com a história e a verdade, a ser revelada, Vassili Grossman, que não era ingênuo, decidiu lutar pela publicação de seu livro. Mas, ao tomar conhecimento de seu conteúdo, um editor informou ao KGB. “A polícia secreta não prendeu o autor, mas sequestrou o romance: um castigo ainda pior”, sublinha Alexandra Popoff.

Em fevereiro de 1961, agentes do KGB estiveram no apartamento de Vassili Grossman e nas gráficas das editoras à procura do original e de cópias de “Vida e Destino”. Levou tudo que encontrou. “Disseram ao escritor que seu livro era mais perigoso para o Estado soviético que [o romance] ‘Doutor Jivago’, de [Boris] Pasternak”, relata a biógrafa. O kapo da ideologia comunista, Mikhail Suslov, sugeriu que o romance era tão explosivo quanto uma bomba atômica. A revelação da história, ainda que fosse verdadeira, e era, “colocava em perigo um regime construído a partir de ‘engodos’”. O livro só poderia ser publicado depois de 250 anos.

Ante o rechaço comunista, Vassili Grossman, com sua coragem e energia habituais, apelou ao governo soviético sugerindo que faltava lógica e verdade na apreensão e proibição do livro. Lamentou que, se estava em liberdade, seu livro estava preso. Livro ao qual havia dedicado sua vida. “Não renuncio a ele”, insistiu.

Vida e Destino (1980), de Vassili Grossman
Vida e Destino (Alfaguara, 915 páginas, tradução de Irineu Franco Perpetuo), do escritor ucraniano Vassili Grossman (1905-1964), é o “Guerra e Paz” do século 20

Os dirigentes leram o protesto do escritor e permaneceram suprimindo a verdade. “O Estado soviético — com ‘sua pesada massa de milhões de toneladas’, nas palavras de Grossman — conseguiu destruí-lo fisicamente: o autor faleceu de um câncer, em 1964, três anos depois do confisco de seu romance, sem saber se, algum dia, seria publicado”. Não havia nenhuma esperança, afinal Stálin estava morto, mas seus “herdeiros”, mesmo se dizendo não mais stalinistas, seguiam na mesma trilha totalitária.

Acreditava-se que o romance estava perdido ou que fora queimado pelo KGB. Entretanto, em 1980, dezesseis anos depois da morte do autor, “Vida e Destino” foi publicado no Ocidente. O livro havia sido preservado — microfilmado — por amigos de Vassili Grossman, que o repassaram para o Ocidente. Acabou publicado em toda a Europa e se tornou um best-seller. Em seguida, saiu nos Estados Unidos. Na União Soviética foi editado somente em 1988, na gestão de Mikhail Gorbachev, o operador da Glasnost e da Perestroika. Era o terceiro grande livro de um russo lido primeiro pelos ocidentais (os outros foram “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak, e “O Arquipélago Gulag”, de Soljenítsin).

Judeus perseguidos pelo nazismo e pelo comunismo

Por ter escrito “Vida e Destino”, e mesmo não tendo conseguido publicá-lo, Vassili Grossman foi proscrito. “Durante quase três décadas, a imprensa soviética não mencionou seu nome.” Os comunistas o retiraram da história da literatura russa. Não existia.

Vassili Grossman escreveu o “Guerra e Paz” do século 20 | Foto: Jewish Currents / Divulgação

Antes de sua morte simbólica, e não apenas simbólica, Vassili Grossman, ressalta Alexandra Popoff, “havia sido um autor célebre. Durante a Segunda Guerra Mundial escreveu sobre as grandes batalhas, desde Moscou a Stalingrado e Berlim; tanto seus artigos como suas obras de ficção contavam com muitos leitores. Ao final da década de 1940, havia vendido mais de 8 milhões de exemplares na União Soviética e também era conhecido no exterior. No Ocidente ainda é lembrado como o correspondente de guerra soviético que escreveu um famoso artigo, em 1944, sob o título de ‘O Inferno de Treblinka’”. Este campo de extermínio da Alemanha nazista, localizado na Polônia, era um dos mais letais.

“O Inferno de Treblinka” era tão relevante, com informações bem apuradas, que foi usado como prova nos julgamentos de Nuremberg. Alexandra Popoff afirma que o artigo — um documento histórico — “surpreende o leitor pela clareza da análise, pela descrição de um genocídio sem precedentes e sua potência emocional. Nesta obra, que de fato antecipa aos julgamentos de Nuremberg, Grossman apresenta as provas ‘ante a consciência do mundo, ante os olhos da humanidade’”.

Ao mencionar o público, Vassili Grossman estava se referindo à “humanidade em seu conjunto”. “Não a humanidade entendida como uma ideia abstrata”. O autor “possuía uma capacidade incomparável para descrever as experiências de milhões de pessoas sem que se perdesse o caráter individual”, ressalta Alexandra Popoff.

Vassili Grossman era judeu e sua mãe, Iekaterina Saviélivena, foi assassinada em 1941, na cidade de Berdíchev, na Ucrânia, por nazistas alemães. Ela foi morta “durante os primeiros massacres de judeus em territórios ocupados na União Soviética”.

A morte da mãe acabou por dirigir-lhe a atenção para a descrição do Holocausto. Ele se tornou mais determinado a contar, de maneira ampla e precisa, os genocídios perpetrados tanto pelos nazistas alemães quanto pelos comunistas soviéticos.

No artigo “Ucrânia sem judeus”, de 1943 (na União Soviética só foi publicado depois de sua morte), Vassili Grossman já discute a Solução Final contra os judeus. Ele descreve o Holocausto como “o assassinato do corpo e alma de uma nação” (um povo).

Em 1943, junta-se à equipe que documenta o “holocausto menos conhecido: o que se produziu em território soviético”.

A pesquisa resulta em “O Livro Negro do Extermínio dos Judeus”, para o qual Vassili Grossman colaborou com artigos inéditos. Porém, como em 1948 Stálin desfechou uma violenta campanha contra os judeus, o livro foi proibido e a edição destruída.

Um Escritor na Guerra, de Vassili Grossman (Companhia das Letras, tradução de Bruno Casotti)

O “pogrom secreto” de Stálin prendeu vários integrantes do Comitê Antifascista Judaico, que contribuíra com a edição do livro “O Livro Negro”. Tachados de “judeus nacionalistas”, eles foram julgados secretamente e executados. Judeus perderam cargos públicos de chefia e o governo comunista preparava uma deportação em massa. Até a mulher de Molotov, o mais leal seguidor de Stálin, foi presa, por ser judia, acusada de envolvimento numa (fictícia) conspiração judaica. O aliado ficou quieto. A purga foi encerrada com a morte em Stálin, em 1953. A história é relatada por Vassili Grossman no seu último romance, “Tudo Flui”. Alexandra Popoff nota que, por ser judeu, Vassili Grossman foi perseguido duplamente. Durante a guerra, pelos nazistas; e, na União Soviética, pelos comunistas. “Os comunistas se referiam aos judeus como ‘cosmopolitas desarraigados.” A imprensa os atacava abertamente.

A comparação entre o stalinismo e o nazismo — mais tarde, feita por outros autores, como a filósofa alemã Hannah Arendt (“Origens do Totalitarismo”) e o historiador britânico Richard Overy (“Os Ditadores — A Rússia de Stálin e a Alemanha de Hitler”) — foi um ato de coragem de Vassili Grossman, pelo qual pagou caro. A verdade — exposta na sua obra — era proibida na União Soviética. A mentira — a ideia de que o país era o paraíso terrestre — era escultura em praça pública.

Vassili Grossman notou que, apesar das diferenças ideológicas, nazismo e comunismo eram semelhantes na sua “completa falta de humanidade, no rechaço à noção fundamental de que toda vida humana individual é valiosa”, registra Alexandra Popoff.

Dois fatos abriram os olhos de Vassili Grossman — a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto — para a falta de humanidade dos sistemas totalitários. Depois, não quis fechá-los — daí a feroz perseguição a tudo que escrevia. A verdade factual e sua defesa do indivíduo, num sistema que rejeitava o primado da individualidade, se tornaram crime para o país. Ele estava “errado”; o sistema totalitário, “certo”.

“Em 1946, no artigo ‘Em memória dos mortos’, escreveu que os milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial não bastam para diminuir o valor de uma só vida: ‘Não há nada mais precioso que a vida humana; sua perda é definitiva e insubstituível”, anota Alexandra Popoff.

A vitória do exército de um homem só

Mesmo sabendo do perigo que representava o totalitarismo comunista, que não permitia crítica e diversidade de pensamento, Vassili Grossman tentou convencer outros escritores a se comportarem como Liev Tolstói e Anton Tchekhov na defesa “dos direitos humanos essenciais e sagrados: o direito de toda pessoa de viver em nosso planeta, a pensar e a ser livre”. Alexandra Popoff escreve que “todas e cada palavra deste artigo se dirigiam contra o regime stalinista, que considerava que o Estado era crucial e o povo, prescindível”.

Ao voltar da guerra, na qual nações democráticas (e uma ditadura, a soviética — que, sim, teve papel crucial na vitória dos Aliados) haviam derrotado a ditadura nazista da Alemanha, Vassili Grossman, um intelectual responsável e intimorato, decidiu que não podia se calar ante o que acontecera e acontecia no país. “O dever de todo escritor era ‘contar a terrível verdade’.” Maluco, ingênuo? Nada disso. Honesto e de uma coragem inaudita.

Ao contrário de Vassili Grossman, os ideólogos não queriam contar a história verdadeira — e completa —, e sim uma história heroica. As terríveis baixas, às vezes por falta de perícia dos comandantes, sobretudo de Stálin, que via os soldados como buchas de canhão, eram omitidas. “A imprensa soviética devia guardar silêncio sobre uma extensa série de questões — desde o sofrimento dos judeus durante a guerra às descomunais purgas de Stálin, o genocídio dos camponeses pela fome, devida a decisões humanas — que afetavam milhões de habitantes da União Soviética. Em sua defesa da liberdade e da verdade histórica, Grossman batalhava contra o esquecimento e, ao mesmo tempo, contra o poder totalitário”, relata Alexandra Popoff. Como exército de um homem só, perdeu. Mas, com a publicação de seus livros, cada vez mais lidos e assimilados, está ganhando a guerra da história — a da voz sedimentada e reverberante. Os perdedores às vezes vencem no longo prazo.

Alexandra Popoff conta que, em 1952, Vassili Grossman conseguiu “publicar uma versão censurada do romance ‘Por uma Causa Justa”. “Era a primeira parte de ‘Vida e Destino’. Com uma estrutura inspirada em ‘Guerra e Paz’, de Tolstói, em que a narração alternava entre os fatos globais e as cenas particulares, pretendia mostrar como o mundo havia mudado nos últimos cem anos. Os retratos de Mussolini e de Hitler, a precisa descrição da guerra desde o campo de batalha e o tema judaico — que coincidia com o apogeu da campanha de Stálin contra os ‘cosmopolitas desarraigados’ — careciam de precedentes entre os escritores soviéticos. O protagonista principal do romance é um físico judeu, Víktor Shtrum, que trabalha no projeto atômico da União Soviética. Grossman se viu obrigado a introduzir várias mudanças, mas pôde manter Shtrum e uma breve análise do Holocausto.”

Tudo parecia bem, ou quase. Até que, em fevereiro de 1953, um mês antes da morte de Stálin, “a imprensa soviética lançou um ataque coordenado contra Grossman e seu romance. Foi um período dramático para o autor, que esteve a ponto de ser preso”.

Já na era pós-stalinista, “Por uma Causa Justa” se “converteu num clássico das letras soviéticas em cujas edições posteriores Grossman pôde ir restaurando elementos da redação original”.

As pessoas se acostumam a tudo, até a falar o que agrada em voz alta e as verdades sussurrando (“Sussurros — A Vida Privada na Rússia de Stálin”, do historiador britânico Orlando Figes, é um livro seminal para se entender a pressão do sistema totalitário no cotidiano das pessoas). Mas Vassili Grossman era um homem diferente, desses raros. Ainda que tenha vivido, “como adulto, no Estado soviético totalitário”, destaca Alexandra Popoff, “tinha a mentalidade de um homem do mundo livre”. Era um rebelde incontornável.

“Num de seus primeiros romances, do gênero histórico — “Stepán Kolchuguin”, publicado na imprensa, antes da guerra —, o protagonista de Grossman postula que a Rússia necessita de uma longa escola de democracia, ‘introduzir a glasnost [‘transparência, abertura’]’ e ‘todas as liberdades inerentes a uma sociedade democrática’, escreve Alexandra Popoff. Lembra, de alguma maneira, a pretensão de Mikhail Gorbachev, na segunda metade da década de 1980.

Com o tempo, a vocação democrática de Vassili Grossman foi se radicalizando. “No último de seus romances — o mais radicalmente anti-totalitário, ‘Tudo Flui’, escrito depois do confisco de ‘Vida e Destino’ —, declara que ‘não há no mundo objetivo pelo qual se pode sacrificar a liberdade do homem’”. Em nome do paraíso, o comunismo, a esquerda sacrificou a vida de milhões. Na União Soviética e na China, só nos dois países, ao menos 100 milhões de indivíduos foram assassinados em nome de um futuro radioso que, sabe-se, não chegou.

Ao contrário de outros escritores, Vassili Grossman não se enquadrava. Por isso o KGB o monitorava em tempo integral. Mesmo sob pressão e vigilância, o escritor decidiu continuar escrevendo seu testemunho sobre o século soviético. “Em ‘Tudo Flui’ investiga como o Estado popular, fundado sobre os princípios da liberdade e da igualdade de direitos, se transformou em uma das ditaduras mais sangrentas do mundo.”

Para os bolcheviques, postula Vassili Grossman, “estava claro que um novo mundo se construía para o povo”, mas não “lhes preocupavam que os principais obstáculos que se opunham à construção daquele mundo novo se encontravam no mesmo povo”.

Alexandra Popoff sugere que Vassili Grossman tinha uma capacidade “inusual” num escritor. “Dotado de formação científica, trabalhou durante um tempo como engenheiro químico nas minas de carvão do Dombás (na bacia do Rio Donets). Esta educação e a experiência laboral resultaram benéficas para sua arte. Como cientista, era capaz de empreender uma análise desapaixonada; como artista, manejou uma emoção profunda e uma imaginação extraordinária. O somatório dessas facetas de sua personalidade e o talento lhes permitiram compreender singularmente bem os fatos do século 20”, assinala Alexandra Popoff.

De uma retidão exemplar, Vassili Grossman não permitiu que os censores comunistas cortassem trechos de “Que o Bem os Acompanhe” que comparavam os padecimentos dos povos judeu e armênio. Por isso sua memória — “exuberante”, segundo Alexandra Popoff — sobre uma viagem pela Armênia não foi publicada em vida. (O livro saiu em Portugal, pela Editora Dom Quixote”, sob o título de “Bem Hajam! Apontamentos de Viagem à Armênia”.)

Obra é alta literatura e documento histórico

Alexandra Popoff nota que a obra de Vassili Grossman é cada vez mais lida em todo o mundo. Especialistas leem com atenção seus escritos sobre o totalitarismo, a fome na Ucrânia, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. “Seus escritos são reconhecidos como fonte histórica de primeira magnitude, testemunho” fidedigno “das calamidades do século 20.” Os livros são alta literatura e documento histórico.

“O capítulo que ‘Tudo Flui’ dedica à fome foi de especial utilidade ao historiador anglo-americano Robert Conquest, que, em seu livro ‘The Harvest of Sorrow’, utiliza o material de Grossman como valor fático. Para Conquest, a descrição grossmaniana da fome [na Ucrânia] se conta entre ‘os escritos mais comoventes sobre este período’. [A historiadora e jornalista americana] Anne Applebaum também cita ‘Tudo Flui’ como documento histórico em seu ‘A Fome Vermelha — A Guerra de Stálin na Ucrânia’ [Record, 559 páginas, tradução de Joubert de Oliveira Brízida]. Hoje já resulta comum se fazer referência a Grossman nos livros de autores ocidentais sobre a história soviética, a Segunda Guerra Mundial e fome de Stálin”, pontua Alexandra Popoff.

Mesmo sendo citado pelos historiadores, como Conquest, Applebaum, Antony Beevor, Richard Overy, Orlando Figes, entre muitos outros, Vassili Grossman é muito menos conhecido na Rússia de Vladimir Putin. Porque Stálin voltou a ser popular, assim como o nacionalismo. “O mito da glória do passado soviético está revivendo”, constata a biógrafa.

Alexandra Popoff diz que, passado mais de meio século da morte de Vassili Grossmann — exatos 56 anos —, é notável que “sua prosa não tenha envelhecido”. De algum modo, assim como Tolstói, se tornou um clássico.

“As ideias de Grossman são essenciais para entender não só o passado totalitário da Rússia, mas também seu presente autoritário. A genialidade artística de Grossman, a perícia de suas descrições e a humanidade de sua prosa explicam que esta ainda possua um atrativo perdurável e universal”, postula Alexandra Popoff. Uma das razões de sua permanência é o fato de ter escapado ao mero panfletarismo. Autores ucranianos e russos (Isaac Bábel, Óssip Mandelstam, Mikhail Bulgákov, Soljenítsin, Pasternak e Vassili Grossman), que viveram sob ditaduras cruentas, sabem que escrevem para o presente — querem interferir no processo histórico — e, sobretudo, para a posteridade.

As editoras brasileiras certamente estão de olho na obra de Alexandra Popoff. Companhia das Letras, Alfaguara (a casa editorial de Vassili Grossman no Brasil, com ótimas traduções de Irineu Franco Perpétuo), Record, Zahar, Amarilys, Intrínseca e a Editora 34 têm gabarito para publicar a biografia do escritor que soube mostrar que os totalitarismos nazista e comunista são irmãos gêmeos, mas não Caim e Abel, e sim Caim I e Caim II.