Mil livros espanarei

Mil livros espanarei

Dizem os amigos que funciono muito bem em crises. Havendo amigo necessitado, noivado enguiçado, abandono de família ou conhecido com dores renais, faço-me presente. Em tempo de calmaria, contudo, não compareço, nada escrevo, mudo de calçada, jamais telegrafo ou envio sinais de fumaça, não sei o dia do aniversário, esqueço-me de ir ao médico e somente corto o cabelo quando a vista fica atrapalhada pelos fios.

Se for verdadeira a caracterização, ótimo: já existe muita chateação na vida para que sempre tenhamos a mesa arrumada e os e-mails respondidos. Gosto, porém, de organizar estantes: vejam, por exemplo, a montoeira de livros aqui em casa, uma soma dos livros que comprei e ganhei com a biblioteca dos pais; já tem uns cincos anos que os estou carregando-arrumando-espanando — e calculo mais outros cinco de trabalho —, arrumação que me impede de ir à farmácia e ao supermercado, já adivinharam.

O problema é que são vários cômodos com estantes, o que dificulta a movimentação da minha carcaça. E há a classificação dos livros, necessária para que haja uma mínima ordem e a possibilidade de os encontrar (um amigo meu costuma dizer que nunca sabe se coloca Karl Marx em “Ciência Política”, “Filosofia”, “Economia” ou “Humorismo”). Bem veem: tudo isso demanda tempo e atividade cerebral, coisas que nem sempre andam juntas.

Livros desaparecidos ressurgem; outros, até então de existência perdida nas brumas e nos debris da memória, espantam-me; fotografias e recortes de jornais caem de alguns deles; as leituras da infância (Tarzan, Winnetou, Dumas) são refeitas com o mesmo prazer da meninice; e o pulmão, claro, se endurece com a poeira aspirada. Mas fazer o quê? É a vida que construí, talvez medíocre e, sem dúvida, o seu tanto pequeno-burguesa, mas, sobretudo, uma vida, nesse aspecto, em que as demandas do mundo externo não me afetam — existirá melhor definição de liberdade? Mil livros carregarei se um único telefonema eu não precisar atender; dois mil espanarei se eu puder fugir do horário marcado, da festa obrigatória, da colação de grau do filho do vizinho.

Sempre que afirmo algo parecido, me aparece um sacripanta qualquer para sugerir a contratação de alguém que organize os tantos livros. Não respondo: quem confunde a opção de uma forma de vida com algum tipo de obrigação institucional que mesmo as bibliotecas privadas deveriam ter, segundo esses conselhos, entendeu pouco ou nada dos prazeres que tiramos dos nossos, digamos, desarranjos neuronais causadores do cacoete de acumulação. Três mil livros carregarei se…

Hoje será outro dia de faina. Tem nada não: vou-me embora para o quarto do fundo, lá sou amigo do rei.